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PENSAR PORTUGAL - Para além da espuma dos dias, escolho estes excertos da mais importante intervenção política feita em Portugal neste ano que agora acaba. Falo da intervenção de Pedro Passos Coelho numa conferência sobre a importância de Alfredo da Silva. O seu discurso foi muito para além das questões conjunturais do SEF ou da TAP que chamaram a atenção dos noticiários. Escolhi estes excertos, editados, que são, creio, um enquadramento perfeito da situação de Portugal. Aqui fica, para memória futura:
“Agora que já não há nem o rei nem a monarquia para culpar pelas nossas desgraças, agora que também já não há as ditaduras nem a sociedade fechada e pequenina que nos limitava, agora está na hora de olharmos para nós próprios e fazermos o que tem de ser feito enquanto vamos a tempo de alterar as coisas como pretendemos, para que nem tenhamos de voltar a passar por experiências tão traumáticas como as que vivemos após a grande crise de 2010, nem estejamos condenados a uma desqualificação paulatina dos nossos sonhos e aspirações de poder viver uma sociedade verdadeiramente mais democrática e com mais justiça.“
“Aproximámo-nos significativamente, em termos reais, da média europeia na primeira meia dúzia de anos da integração quando éramos apenas 15 países. Mas conseguimos singularmente regredir à medida que países mais pobres e menos desenvolvidos que nós se integraram na União Europeia. Poderá dizer-se que regredimos mais nos anos de crises que tivemos de enfrentar, o que é verdade. Mas isso esquece que os outros também enfrentaram as crises e que a média europeia reflete esse desempenho de todos, pelo que se nos afastámos mais dos outros durante as crises, foi porque a nossa vulnerabilidade estrutural nos impõe nas crises prejuízos maiores do que aos outros.”
“Não será, finalmente, conveniente perguntarmo-nos: que Portugal é este que não consegue fugir à cauda da Europa quando praticamente todos os outros conseguem? A resposta terá de ser dada por nós próprios. Olhando para dentro da sociedade portuguesa e mudando o que é preciso. Mudar nas estruturas públicas e privadas. Conseguir, se assim o desejarmos, implantar regras estáveis e confiáveis. Responsabilizar a sociedade civil e o Estado e cultivar um exemplo de salvaguarda e de separação de interesses que possa incutir o desenvolvimento do capital social e da confiança.“
SEMANADA - Segundo um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos em Portugal, 6% da população não tinha, no ano passado, capacidade para pagar as despesas do dia-a-dia ou para liquidar a tempo rendas e outros encargos; outros 19% não tinham dinheiro para aquecer as suas casas; a despesa do Estado em educação, em termos de percentagem do PIB, está a cair desde 2016; a despesa do estado na saúde, em percentagem do PIB, caíu em 2016, 2017 e 2018 e só recuperou um pouco em 2019; a receita fiscal entre 2015 e 2019, em impostos directos e indirectos, aumentou cerca de 20%; no mesmo período a despesa corrente do Estado em percentagem do PIB caíu cerca de 10%; o défice público do último trimestre deste ano, medido em proporção do produto interno bruto (PIB), deverá registar o segundo valor mais alto, logo atrás do obtido por Sócrates em final de 2010; Marcelo Rebelo de Sousa prevê gastar 25 mil euros na sua campanha eleitoral para as presidenciais, Ana Gomes admitiu que gastará o dobro, o PCP prevê 450 mil euros, André Ventura 160 mil, Tino de Rans aponta para 16 mil, Tiago Mayan prevê 40 mil e Marisa Matias 256 mil; a provedora de justiça revelou na Assembleia da República que só agora foram acatadas recomendações dadas desde 2018 sobre a actuação do SEF no Aeroporto de Lisboa; os médicos do sector privado da saúde que tratam doentes Covid não foram incluídos na primeira vaga de vacinados.
LA PALISSADE DA SEMANA - “O jornalista de televisão que foi o provedor constata que nestas eleições presidenciais as entrevistas políticas televisivas ganham um relevo particular” - José Manuel Barata Feyo.
FRASE DA SEMANA - “É uma enorme carga burocrática. Trouxe um pequeno bosque de árvores abatidas para entregar ao Estado informação que já tem” - Tiago Mayan Gonçalves, ao entregar no Tribunal Constitucional a sua candidatura presidencial, pela Iniciativa Liberal.
FOTOGRAFIAS NA RUA - O lugar da fotografia é na rua? Pode ser. As imagens de Sebastião Salgado, no seu trabalho “Génesis”, estão junto do Arco da Rua Augusta. São 38 fotografias. Até 14 de Janeiro pode ser vista esta exposição organizada pela Fundação La Caixa”. Sebastião Salgado, 76 anos,é economista de formação e apaixonou-se cedo pela fotografia. Recusou uma oferta de trabalho do Banco Mundial para se dedicar à fotografia e tem feito trabalhos notáveis sobre o meio ambiente e a natureza humana. As imagens são a preto e branco, como é habitual no trabalho de Salgado. Outras recomendações: no Porto, na Galeria Sput&Nick The Window (Rua do Bonjardim 1340), a dupla de artistas Daniel Moreira e Rita Castro Neves apresenta uma exposição sobre o tema do cortelho – uma pequena construção em pedra de granito, abrigo em forma de iglu, característico da paisagem rural do noroeste português. A exposição “O Cortelho” estará patente até 30 de janeiro. Na NO-No, em Lisboa, Ana Pérez-Quiroga apresenta até 9 de Janeiro a exposição “De Que Casa Eres? Episódios de un cotidiano” . Em Faro, no Museu Municipal, até 17 de Janeiro estão expostos trabalhos de Xana, António Olaio e Tiago Batista sob a designação genérica “O Lápis Mágico”.
O PIANO - Soube-se em 2020 que o pianista Keith Jarrett, 75 anos, decidiu, por motivos de saúde, não voltar a realizar concertos. No início da sua carreira, nos anos 60, tocou com os Jazz Messengers de Art Blakey, mas foi como pianista no grupo de Miles Davis, nos anos 70, que ganhou rapidamente fama. Ao longo da carreira tocou também com músicos como Charlie Haden, Paul Motian ou Freddie Hubbard, entre outros. Ao longo da sua extensa discografia destacam-se as gravações efectuadas ao vivo, nomeadamente o histórico “The Koln Concert”, de 1975, que impôs o seu estilo e a sua sonoridade e o tornou uma figura incontornável da história do jazz. Ao decidir parar com as suas actuações públicas Keith Jarrett anunciou um novo disco, gravado ao vivo, em 2016, na capital húngara. Jarrett afirma que The Budapest Concert é o melhor de todos os seus registos gravados ao vivo, superando outro disco do mesmo ano, de um recital em Munique, e defende mesmo que a gravação de Budapeste é melhor que o Koln Concert. Todas as gravações ao vivo de Jarrett baseiam-se na improvisação o que torna cada concerto diferente do outro. Aqui, neste novo disco duplo lançado há poucos meses, há 12 partes, como ele gosta de classificar os temas nas notas dos discos. Cada uma destas partes surge como um momento musical autónomo mas todos eles estão relacionados entre si, do mais curto de cerca de três minutos, ao mais longo que excede os 15. Apenas uma das partes, a última, recebe um título - “Blues”, um surpreendente boogie-wooggie que assim deixa no ar um Jarrett mais raro e solto. No final há ainda o registo dos dois encores, “It’s A Lonesome Town” e "Answer Me”. Duplo CD ECM, disponível em streaming no Spotify.
O CADERNO DE CARTIER-BRESSON - Todos os anos ofereço a mim mesmo uma prenda. Este ano foi uma magnífica edição feita pela Thames & Hudson de “Scrapbook”, de Henri Cartier Bresson, publicado pela primeira vez em 2006. A história do livro é ela própria um episódio. Em 1946, aos 38 anos, Cartier-Bresson viajou de barco para Nova Iorque, na sequência de um convite para expôr no MoMa, The Museum Of Modern Art, que na altura começou a mostrar fotografia. Na mala levava 300 fotografias, impressas em pequeno formato. Na chegada a Nova Iorque comprou um livro de apontamentos, colou nas suas páginas todas essas imagens e levou-o aos curadores do MoMa para que eles pudessem ter uma melhor ideia do seu trabalho. Todas as fotografias desse caderno, que foi reproduzido pela primeira vez na edição da Thames & Hudson, foram originalmente feitas entre 1932 e 1946. Martine Franck, sua viúva e Presidente da Fundação Henri Cartier-Bresson, que morreu em 2012, contou que o original deste caderno de apontamentos estava numa velha mala escondida no meio de uma estante da casa onde viviam. De vez em quando, recorda nas notas iniciais do livro, o fotógrafo dizia -lhe que este era o seu mais precioso objecto, a par do álbum que tinha preparado para o realizador Jean Renoir, na esperança de poder fotografar a filmagem de uma das suas obras, como veio a acontecer aliás.. Agnès Sire, Diretora da Fundação Cartier-Bresson conta as histórias à volta deste Scrapbook, numa introdução que reproduz páginas da agenda de Bresson, documentos oficiais, imagens de família, a troca de correspondência com David “Chim” Seymour o obreiro desta exposição em Nova Iorque. A maior dificuldade da exposição no MoMa, no pós guerra, era a falta de papel fotográfico para garantir boas impressões das imagens. Inicialmente a exposição estava pensada para 75 fotos e no fim acabou por mostrar 163 em ampliações de 30x40 e 40x50. Foi também feita uma versão mais reduzida, de 100 imagens, que o MoMa levou em digressão por várias cidades americanas. Esta edição do “Scrapbook” inclui, ao longo de 260 páginas, não só reproduções das páginas originais, mas também diversos textos de enquadramento histórico, e informações que ajudam o compreender o processo criativo e o método de selecção de Henri Cartier-Bresson para a exposição que o lançou definitivamente como um nome incontornável da fotografia do século XX.
DIXIT - “Só com instituições mais fortes venceremos. Golpes de sorte e de génio, habilidades e invenções de nada servirão. Instituições e liberdade, sim” - António Barreto
BACK TO BASICS - “Por melhor que uma estratégia possa parecer, convém olhar para os seus resultados” - Winston Churchill
2021 - Daqui a uns dias começa um novo ciclo eleitoral. Teremos as eleições presidenciais daqui a um mês - a 24 de Janeiro. Estas são eleições muito peculiares - não entre escolher candidatos mas referendar um estilo de viver e assumir a Presidência. Marcelo mudou a forma sem mudar as regras, surpreendeu muitas vezes, abusou do sentimento, tornou-se o primeiro Presidente da República da era dos smartphones - sem selfies o seu mandato teria sido diferente na forma de se relacionar com as pessoas. As sondagens dão-lhe grande distância sobre os outros candidatos mas estas eleições têm uma particularidade - são as primeiras em tempo de pandemia, vão decorrer com constrangimentos de movimento e de acção. Marcelo já tinha feito na sua anterior eleição uma campanha austera, vai agora ser ainda mais rigoroso. Os outros candidatos vão ser comparados com ele se saírem da linha. Se houvesse um rival a sério seria interessante ver como se desenrolariam as candidaturas que disputassem a vitória. Assim, trata-se apenas de referendar um estilo que poupou a António Costa muitas dores de cabeça.Verdade seja dita que oposição é coisa que não existe, está desaparecida em combate há uns tempos e não se vê que a curto prazo a possa assumir. Mas o ano eleitoral vai também trazer, lá mais para o Outono, as eleições autárquicas e aí as guerras vão ser ferozes. A ver vamos como a pandemia evolui e como poderão então ser as campanhas eleitorais. Mas é certo que provavelmente muitas câmaras mudarão de titular, é provável que o Chega venha a governar alguns concelhos e a grande incógnita será saber o que acontece em Lisboa e no Porto. Em Lisboa Medina, apesar da péssima gestão que fez da cidade, pode vir a ganhar por falta de adversário credível. E, no Porto, Rui Moreira está debaixo de fogo. O resultado das autárquicas poderá ter influência no evoluir da geringonça - e essa é uma das dúvidas que só esclareceremos lá para o fim de 2021. Em havendo saúde, vai ser um ano animado.
SEMANADA - O Sindicato do SEF criticou a nomeação de um militar para dirigir o serviço argumentando que aquele organismo tinha “30 anos do mais civilista serviço de imigração da Europa”; o mesmo Sindicato ainda não se pronunciou sobre as denúncias de práticas sistemáticas e repetidas de violação dos direitos humanos por agentes da instituição, nomeadamente no aeroporto de Lisboa; a Ordem dos Advogados denunciou à Provedoria de Justiça graves atropelos do SEF na regularização de imigrantes; o número de casais com ambos os elementos inscritos nos centros de emprego aumentou 15,9% em Novembro face ao mesmo mês do ano passado; há 166 hotéis à venda devido às quebras verificadas no sector do turismo; o médico que denunciou o homicídio do cidadão ucraniano pelo SEF no aeroporto foi despedido do Instituto de Medicina Legal; Portugal é dos países europeus com maior fatia do crédito sob regime de moratória, 23%; o Banco Alimentar Contra a Fome recebe mais de 50 pedidos de ajuda por dia; um relatório da OCDE indica que se ignora o número exacto de médicos que trabalham em Portugal, existem apenas estimativas; Quase 30% dos alunos de 11, 13 e 15 anos não gostam da escola e a segunda coisa de que menos gostam é das aulas (35%) e 85% dos inquiridos considera a matéria aborrecida; um terço dos portugueses já teve apoios sociais por causa da pandemia; em dez anos as escolas do básico e secundário perderam mais de 370 mil alunos;
ARCO DA VELHA - Esta semana surgiram mais relatos de agressões feitas por agentes do SEF no aeroporto antes e depois do assassinato de Ihor Homeniuk e a Inspecção Geral da Administração Interna admitiu ter encontrado práticas desumanas e ilegalidades no funcionamento daquela força policial.
OS GRANDES ENCONTROS - “Coimbra - A Cidade e as Sombras” é o título da exposição que assinala os 40 anos dos Encontros de Fotografia ali iniciados em 1980 por iniciativa de Albano da Silva Pereira. Ao longo dos anos a organização dos Encontros apostou, na época de forma pioneira, na divulgação da fotografia, acompanhando o seu entendimento e evolução ao longo destas quatro décadas. Os Encontros trouxeram a Portugal nomes importantes da história da fotografia mas também realizaram encomendas específicas que permitiram criar um novo olhar sobre Coimbra e sobre outras regiões. Até 27 de Fevereiro será possível ver obras de nomes como António Júlio Duarte (na imagem), Bernard Plossu, Augusto Brázio, Inês Gonçalves, Paulo Nozolino ou George Krause e também artistas plásticos como Rui Chafes, ou Paulo Brighenti, entre outros. A exposição distribui-se por três núcleos intitulados “Coimbra”, “Ao Espelho da Sereia” e “Coração da Ciência”, apresentando uma retrospectiva de três projetos que fazem parte da história dos Encontros de Fotografia, resultado de uma seleção de obras pertencentes à coleção do CAV, feita por Albano Silva Pereira. Outros destaques: em Braga, na Zet Gallery, João Louro apresenta About Today, uma seleção de cerca de dezena e meia de trabalhos, produzidos entre 1995 e 2019, na sua generalidade de exibição inédita; e em Lisboa, o Círculo Eça de Queiroz apresenta obras da sua colecção na sua maior parte formada durante os anos em que António Ferro dirigia o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) e patrocinou o Segundo Modernismo Português. Ali estão trabalhos de Canto da Maia, Bernardo Marques, Leopoldo de Almeida, Júlio de Sousa, Estrela Faria e Paulo Ferreira - artistas ligados às Exposições de Arte Moderna do SPN, às grandes feiras internacionais de Paris e Nova Iorque e à Exposição do Mundo Português.
UM DISCO LUSO-CANADIANO - Lucy Hocking é uma jornalista neo-zelandesa que vive em Londres e trabalha para a BBC. Era a entrevistada da newsletter da Monocle de sábado passado, uma das minhas leituras de fim de semana. A entrevista segue um modelo onde se pergunta que revistas lê, que noticiários ouve, que livros está a folhear e que música ouve. A resposta de Lucy deixou-me curioso - um disco de um grupo chamado Mira Pardelha, que ela caracteriza como Luso-Canadiano e que integra o seu próprio marido, debaixo da parte que leva a bandeira do Canadá. O disco chama-se “About Land, fui ouvi-lo no Spotify. O álbum foi criado entre Lisboa e Londres por um colectivo de músicos portugueses e canadianos, Mira Pardelha, que existe desde 1998. Nesse ano os músicos canadianos Jason Breckenridge e Ian Brimacombe partilhavam habitação em Lisboa e foram entrando na tradição musical da cidade e do país com o apoio de vários portugueses. Agora, duas décadas depois da ideia original, Breckenridge e Brimacombe revisitaram as suas memórias lisboetas e fizeram finalmente um disco, com o auxílio de músicos locais, entre as quais a vocalista Benedita Barbosa e de mais alguns músicos que vivem em Londres. O disco tem raízes na música folk do Canadá, mas tem fortes influências portuguesas como se comprova em temas como “Rosa dos Ventos” ou “Entre O Céu E O Chão”. Trata-se de um pop elaborado, com dez temas onde se faz também ouvir a influência de sonoridades brasileiras, como em “For Prester John” onde se sente que alguém andou a ouvir os Mutantes. É curioso ouvir como músicos de outras nacionalidades constroem canções cantadas em português e como a voz de Benedita Barbosa é surpreendente. O Spotify serve para isto - descobrir o que não se conhece.
CRIME & CASTIGO - Tenho uma queda por policiais. Isso e livros sobre História. Mas reconheço que os policiais são uma coisa à parte. Fui alimentado a livros da colecção Vampiro durante a adolescência e a coisa deixou marcas profundas. Um dos grandes policiais editados este ano em Portugal é “Terra Alta”, o livro de Javier Cercas que venceu o Prémio Planeta em 2019. Pode alguém querer fazer justiça? A vingança é legítima? Estas são as questões de fundo que lançam a narrativa do livro, marcada por personagens fortes. O livro conta a epopeia de um homem em busca do seu lugar no mundo. “Terra Alta” conta como um crime terrível abala a pacata comarca que lhe serve de título: os donos da sua maior empresa aparecem barbaramente assassinados. Quem toma conta do caso é Melchor Marín, leitor compulsivo e jovem polícia que chegou de Barcelona quatro anos antes. Sobre os ombros carrega um passado obscuro que o converteu numa lenda junto das forças policiais, mas que ele acredita ter enterrado sob uma vida feliz como marido da bibliotecária da povoação e pai de uma menina chamada Cosette, tal como a filha de Jean Valjean, o protagonista de “Os Miseráveis”, o seu livro preferido. Nascido na região de Cáceres, Javier Cercas, 58 anos, está traduzido em mais de 30 línguas e ganhou vários prémios ao longo da carreira. Na sua escrita surge sempre a evocação de um imperativo moral que cria heróis improváveis e “Terra Alta” é um bom exemplo disso mesmo. Aproveitem estes dias e os confinamentos e divirtam-se com a investigação deste crime.
O BOLO DE TODAS AS ESTAÇÕES - Imagino que pudessem estar à espera que me colocasse na guerra dos Bolos Rei. É um debate curioso: Bolo Rei ou essa modernice chamada Bolo Rainha? Por este andar proíbem o sexo no nome dos bolos, digo-vos eu. Não pensem que vou falar do clássico Bolo da Confeitaria Nacional, nem tão pouco do moderno Bolo da Gleba. Também não falarei de sonhos, nem de filhoses. Mas em contrapartida vou falar de um bolo de todo o ano que, na minha modesta opinião, tem o seu expoente máximo na Pastelaria Versailles, ao Saldanha. Trata-se do caracol, indiferente às questões de género e sem se preocupar com a extinção das frutas cristalizadas, que é o pecado original do Bolo Rainha. Sempre achei que existem pontos de contacto na textura da massa e no seu recheio, entre o caracol da Versailles e o Bolo Rei. O caracol, a acompanhar uma chávena de bom café, é dos melhores começos de dia que se pode imaginar. Bate os donuts imperialistas aos pontos e deixa os maneirismos dos croissants a boa distância. O seu único rival, e mesmo assim tem dias, é o bolo de arroz. Mas eu por mim, prefiro o caracol, disponível todo o ano e sempre o da Versailles.
DIXIT - “O mandato e a legislatura resultaram porque ambos precisavam vitalmente um do outro, Marcelo e Costa, Presidente e Governo. Nunca se tinha ido tão longe no entendimento.” - António Barreto
BACK TO BASICS - Os políticos e as fraldas devem ser mudados pela mesma razão - Eça de Queiroz.
O CÍRCULO FECHADO - O novo chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, foi o mais destacado assessor económico de José Sócrates e o seu homem forte para os negócios com a Venezuela durante os seis anos de Governo socrático. Após 2011 os contactos entre Escária e Sócrates continuaram até que o ex-Primeiro Ministro foi detido em 2014. Escária esteve também sempre próximo do actual Primeiro Ministro mesmo depois de, em 2017, se ter demitido de assessor económico de Costa quando foi envolvido no caso das ofertas de viagens pela GALP ao Euro 2016. Mais recentemente esteve envolvido nas negociações entre Costa e o polémico primeiro-ministro húngaro,Viktor Órban. Antes, recordo, também fomentou boas relações com o sinistro regime venezuelano. É pois um rapaz que gosta de relações escaldantes. Num recente artigo João Miguel Tavares escreveu: “onde há negócios, dinheiro e diplomacia económica, aí está Vítor Escária. Sempre foi assim e, pelos vistos, continua a ser, e de um modo que não poderia ser mais assumido – ao colocar Escária como seu chefe de gabinete, António Costa está a pôr os negócios e o dinheiro (neste caso, a enxurrada de fundos europeus) no centro do seu governo.” Esta nomeação e outras ocorridas recentemente mostram que o Primeiro Ministro começa a ter falta de capacidade - ou talvez de vontade - em ir buscar caras descomprometidas. O executivo é cada vez mais um prolongamento do núcleo duro do aparelho do PS. Na realidade um quarto dos membros do actual Governo já foi chefe de gabinete em algum executivo socialista. Que resultado tem isto nas nossas vidas? - a balbúrdia criada pela incapacidade do Ministro Eduardo Cabrita no caso do SEF e a cobertura que lhe foi dada por António Costa e por Santos Silva mostram onde o círculo fechado e a protecção dos incondicionais pode levar. Quem acha que o resultado é bom?
SEMANADA - O PS chumbou um projecto-lei, proposto já depois do assassinato de Ihor Momenyuk, onde era exigido que a audiência aos estrangeiros para a recusa de entrada em Portugal só pudesse ser feita na presença de um advogado; Portugal continua a ser um dos países europeus em que maior número de pessoas declara não ter capacidade para manter a sua casa aquecida de forma adequada; uma sondagem recente indica que apenas 61% dos portugueses estao dispostos a receber a vacina contra Covid-19 de imediato e 19% adiarão a decisão e 8% afirmam não querer ser vacinados; segundo a Marktest os canais de TV emitiram em Novembro, pela primeira vez desde Março de 2019, mais publicidade do que em igual mês do ano passado; num relatório apresentado há cerca de um ano o Comité Contra a Tortura da ONU manifestava preocupações sobre o respeito pelos direitos huamnos em instalações do SEF; uma sondagem divulgada esta semana indica que Marcelo é o candidato presidencial preferido até entre eleitores do Bloco de Esquerda; o custo suportado pelo Estado para segurar bancos em Portugal ascendeu a cerca de 21 mil milhões de euros entre 2018 e 2019; sete em cada dez portugueses estão muito pessimistas quanto aos efeitos da pandemia na economia nacional; um estudo da Universidade Católica indica que a pandemia reduziu os rendimentos a um quarto dos inquiridos; os portugueses têm hoje menos poder de compra do que em 2010; prevê-se que neste mês de Natal sejam vendidas em Portugal cinco toneladas de bacalhau.
ARCO DA VELHA - O presidente do sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF criticou o Presidente da República por este ter defendido a necessidade da reestruturação daquela polícia.
UM PORTUGUÊS EM MÁLAGA - Até 14 de Março de 2021 o Centro de Arte Contemporânea de Málaga acolhe cerca de 250 obras de Pedro Cabrita Reis que mostram a evolução da obra do artista português ao longo da sua carreira. “Cabrita - Cabinet d’Amateur” é uma instalação em que as obras cobrem as paredes da área da exposição, a zona central do Centro, de cima abaixo, de forma aparentemente aleatória - escreve o “la Vanguardia”, que salienta que o nome a e a forma da mostra têm a ver com o espírito coleccionista do artista(na imagem). Aliás a maior parte das obras pertence à colecção pessoal de Cabrita, à excepção de um pequeno número proveniente de colecções particulares. Ainda segundo o La Vanguardia cerca de uma centena de obras foram feitas entre 2019 e 2020. Comissariada por Helena Juncosa, a exposição mostra pintura, desenho, fotografia, escultura mas também instalações compostas por objectos diversos. Outras sugestões: em Évora, na Fundação Eugénio de Almeida, Pedro Calhau apresenta até final de Janeiro a exposição “Do Inesgotável”, com trabalhos de gravura, fotografia, desenho, instalação e texto. E já que estamos em época invernal o Museu da Farmácia , em Lisboa, junto ao Chiado, apresenta “Vintage PUB – a memória das farmácias” , a nova exposição que ali reúne diversos anúncios da década de 1960, desde cartazes de Melhoral até rebuçados para a tosse.
O DUETO - A relação entre a cantora Maria João e o pianista Mário Laginha vem de longe. Ambos trabalharam juntos em diversos projectos, desde o inicial quinteto de Maria João, até que em 1994 se concretizou com o álbum “Danças” o início do dueto que se afirmou ao longo dos anos em mais de uma dezena de trabalhos e discos. Na realidade, desde o início, a relação entre ambos foi de uma complementaridade musical invulgar feita de uma cumplicidade crescente entre a forma muito própria de interpretação vocal de Maria João e a capacidade de adaptação do piano de Mário Laginha à voz em canções de muitos e diferentes géneros. O “Best Of Maria João & Mário Laginha”, agora editado, mostra isso mesmo em 14 temas gravados em tempos muito diversos, entre 1996 e 2012. Aqui estão originais dos dois artistas, como a faixa inicial “Cair do Céu”, mas também interpretações de clássicos como “Black Bird” de Lennon & McCartney ou “Beatriz”, de Edu Lobo e Chico Buarque. E, claro, há diversas participações, como as dos brasileiros Gilberto Gil em “Um Amor”, e Lenine em “Flor”. Edição Universal disponível em CD e streaming.
OLHAR PARA A HISTÓRIA - “A minha visão da História humana, da História-vivida é contemplativa. Requer um olhar atento, global, pacífico, não interventivo” - assim define José Mattoso o seu processo de trabalho. “A História Contemplativa” é precisamente o nome do seu livro, agora editado, que reúne palestras, ensaios e artigos surgidos entre 1996 e 2013, que abordam temas tão diversos como as relações entre mouros e cristãos na Península Ibérica do século XI, as particularidades da religiosidade dos alentejanos, os contactos do Portugal recém-nascido com o mundo ou a importância dos lugares e monumentos portugueses classificados como património mundial pela Unesco. A abrir o livro está um ensaio inédito, escrito expressamente para esta edição, que pode ser visto como uma súmula do pensamento de José Mattoso, um dos maiores historiadores portugueses, actualmente com 87 anos. São suas estas palavras: «A história como disciplina confunde-se com a técnica historiográfica: tem métodos, exige a crítica, o rigor e a quantificação; demonstra factos e constrói narrativas; propõe hipóteses e interpreta documentos. É uma das Ciências Humanas. Mas a História é também uma Arte, porque busca a compreensão do sentido que os atos humanos adquirem por serem praticados no Tempo. Na primeira acepção, a História demonstra a veracidade dos factos, e descobre o seu encadeamento. Na segunda, considera-os como manifestação da condição humana, ou seja, como resultado da inserção do Homem no Tempo. Enquanto Ciência, utiliza a análise; enquanto Arte, além de formular sínteses que a aproxima da totalidade, apercebe-se da beleza do Ser revelado pela contemplação.» Edição Círculo de Leitores, Temas & Debates.
PETISCO APURADINHO - Sopa de rabo de boi é uma coisa tão comum que até há sopas instantâneas com a receita. Mas nada se compara ao sabor da carne do rabo de boi, uma iguaria infelizmente ainda pouco conhecida e que não se encontra em todo o lado. Dizem os entendidos que a origem do petisco é espanhola, mas em Portugal foi no Ribatejo que o petisco se aprimorou. O rabo de boi deve ser cortado aos pedaços, pelas articulações, que depois de bem cozinhados num lento estufado com alho francês, cenoura, louro, cravinho e um pouco de vinho fazem maravilhas. A carne vai-se separando dos ossos e cartilagens e fica com um sabor magnífico. É verdadeiramente um petisco que requer paciência, tempo e trabalho. O seu acompanhamento ideal é um puré de batata natural - nada de instantâneos. A combinação do estufado com o puré que se vai embebendo no molho, já no prato, é verdadeiramente arrebatadora. Eu gosto de salpicar o puré com pimenta preta moída na altura. Esta pequena maravilha foi-me apresentada pela primeira vez, há uns anos, n’ O Apuradinho (Rua de Campolide 209, telefone 213 880 501). E esta semana lá voltei a encontrar a iguaria, num almoço tardio ao fim de uma manhã de afazeres. Soube-me mesmo bem.
DIXIT - “Ao fim destes anos todos de apoio maciço de fundos estruturais, Portugal é ainda um país atrasado” que deve aplicar o dinheiro “de uma forma radicalmente diferente da reprodução do passado" - Elisa Ferreira, Comissária Europeia com a pasta do financiamento comunitário.
BACK TO BASICS - “Às vezes, as nossas acções são perguntas e não respostas“ - John Le Carré
A ENCOBRIDORA - Nove meses. É este o tempo que decorreu entre o assassinato de um ucraniano por agentes do SEF no aeroporto de Lisboa e o pedido de demissão finalmente apresentado pela Diretora desses serviços. Durante meses Cristina Gatões assobiou para o ar como se nada fosse. Na realidade, encobriu. De início a investigação foi branda e relendo as notícias relativas ao crime a ideia é que a cúpula do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras quis evitar que se falasse ou investigasse a fundo o assunto. O Ministro da Administração Interna objectivamente ouviu os assobios e ficou-se quedo e mudo. Esta semana aceitou piedosamente o tardio pedido de demissão da senhora. Fica-se na dúvida se o silêncio da senhora foi voluntário ou se foi ordenado. Não é muito normal ver um Ministro conivente com a ocultação dos factos. Será interessante ver qual vai ser o próximo posto desta diligente funcionária do Estado, uma jurista que fez toda a carreira no SEF. Cristina Gatões demorou nove meses a reconhecer o sucedido que classificou modestamente de actos de tortura. Custa acreditar que os outros membros da Direcção Nacional do SEF, que continuam em funções, não soubessem do sucedido. Não falaram, não se indignaram mas o Ministro Cabrita atribuíu-lhes agora a responsabilidade da reestruturação futura dos serviços. Seria bom saber porque porque foram eles também coniventes no silêncio - também receberam ordens para se calarem? Recentemente o SEF anunciou que face ao sucedido seria instalado um botão de pânico nas instalações para que eventuais agredidos pudessem reagir. Podia ser anedota se não fosse macabro. O botão de pânico dá ideia do género de reestruturação que povoa estas mentes. E Eduardo Cabrita tem em toda esta novela muito que explicar. Se não promoveu, ajudou ao silêncio, a esconder, a desvalorizar a morte de um homem às mãos do Estado. Não devia continuar em funções.
SEMANADA - Um estudo recente indica que a queda do emprego registada este ano em Portugal concentrou-se nas profissões com os salários mais baixos; Boaventura Sousa Santos escreveu um artigo a elogiar o ensaio “O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo”, de Lenine, a propósito da votação do Orçamento de Estado; apesar da diminuição de turistas devido à pandemia a Madeira vai continuar a gastar este ano um milhão de euros no fogo de artifício da noite de fim de ano; segundo o Inquérito à Fecundidade de 2019 10% dos portugueses não têm intenção de ter filhos; 50% dos estudantes terminam o 12º ano depois da idade esperada, ou seja 17 anos; na Assembleia da República o plano de vacinação contra a gripe recebeu 310 inscrições, mas o parlamento só recebeu até agora 105 vacinas; as vendas de queijo da Serra da Estrela com denominação de origem protegida caíram 60% devido essencialmente à anulação de feiras e eventos onde se comercializa o produto; o exército travou a admissão de um jovem que se afirmou como transexual; no Santuário de Fátima, de março até outubro deste ano, foram anuladas 987 peregrinações (703 estrangeiras e 284 portuguesas), num total de mais de 320 mil peregrinos"; a ausência de peregrinos traduz-se "numa quebra acentuada de receitas, 50,6%, nomeadamente ao nível dos donativos; até Outubro, no Serviço Nacional de Saúde, realizaram-se menos 112 mil cirurgias , menos 37 mil consultas presenciais por dia e menos 22 milhões de exames que em igual período do ano passado; a procura de viagens aéreas caíu 70,6% a nível global em Outubro deste ano comparado com o mesmo mês de 2019.
ARCO DA VELHA - Um sargento da GNR, arguido no caso do assalto das armas em Tancos, justificou assim as suas longas conversas com o líder do furto para que dissesse onde escondera o material: “Os informadores são como as vacas: enquanto tiverem leite há que insistir” .
IMAGENS CONFINADAS - No Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, inaugurou e está patente até 23 de Janeiro a exposição Face À Vida Nua, que recolhe o trabalho de três artistas durante a pandemia e o confinamento: Luciana Fina apresenta-nos um filme realizado no primeiro surto pandémico deste ano, em que se confronta com a devastação da paisagem natural por especulação imobiliária, Vasco Barata dedicou-se nos meses da pandemia à prática do desenho, contido às dimensões físicas do seu espaço de trabalho, e João Pina documentou com um ensaio fotográfico (na imagem) o célebre edifício Copan, em São Paulo, projetado por Óscar Niemeyer, que tem 1160 apartamentos e mais de 5000 residentes. Outros destaques: a não perder nos dias 11,12 e 13 na Galeria Monumental “Virose Artística”, uma mostra de pequenos formatos com obras de mais de 50 artistas ao preço único de 50 euros. Exclusivamente no Facebook e Instagram da Galeria. No Museu Municipal de Faro inaugurou a Exposição “Território Solar”, com obras da Coleção de Fotografia Contemporânea do Novo Banco, com curadoria de Maria Eduarda Duarte e a exposição está patente até 28 de março de 2021. E finalmente na SNBA uma exposição sobre a obra de Cruzeiro Seixas, “Fazedor Nada Perfeito” mostra até 30 de Dezembro mais de 60 obras entre escultura, desenho, joalharia e serigrafia.
UMA RARIDADE DE AMÁLIA - Como é que nasce um disco? “Ensaios”, a edição agora lançada com registos de Amália Rodrigues, ajuda a perceber como era o processo criativo da fadista. Trata-se de um CD duplo em que o primeiro disco recolhe gravações feitas nos Estúdios de Paço de Arcos da Valentim de Carvalho e o segundo gravações feitas em casa da própria Amália, em 1970 e 1971. Mais uma vez este trabalho, ligado às comemorações do centenário da fadista, tem a mão de Frederico Santiago que tem desempenhado um papel fundamental na recuperação do arquivo Amália. O primeiro disco, recolhe cinco temas, ensaios e takes experimentais gravados em estúdio, incluindo conversas com Hugo Ribeiro, o técnico de som que mais trabalhou com ela, e os músicos que a acompanhavam. Ali estão Meu Amor É Marinheiro, Sete Estradas, Rosa Vermelha, Alfama, Perdigão. No segundo disco, gravado em casa de Amália, em Lisboa, está o registo do seu trabalho com Alain Oulman, em fados como Sete Estradas, Nunca Ninguém Viu Ninguém, Gondarém, Perdigão, Abril, Rosa Vermelha e Com Vossa Licença. E depois há uma surpresa: gravações de Alain Oulman a cantar para Amália em meia dúzia de fados. São momentos de intimidade e que mostram a enorme cumplicidade musical entre ambos, o processo de busca e repetição até se chegar ao ponto que Amália pretendia - nas suas palavras, perto da perfeição: “a mim as coisas só me parecem completas quando as tenho todas, quero sempre fazer mais, fazer melhor”. A edição é complementada por um livro que traça a cronologia de 1970, um ano em que Amália cantou do Japão aos Estados Unidos. O livro tem fotografias inéditas, reprodução de páginas dos cadernos manuscritos de Alain Oulman, com partituras e poemas dos fados, além de notas explicativas de Frederico Santiago sobre cada um dos fados, por Frederico Santiago. Edição Valentim de Carvalho.
O TEMPO DA CHINA - Diplomata, académico, perito em relações internacionais e assuntos asiáticos, Kishore Mahbubani é Professor na Universidade Nacional de Singapura. Foi embaixador de Singapura nas Nações Unidas e presidiu ao Conselho de Segurança em 2001 e 2002. Já este ano lançou “Has China Won? - The Chinese Challenge To American Primacy, agora editado em português pela Bertrand com o título “A China Já Ganhou?”. Ao longo de nove capítulos Kishore Mahbubani faz uma reflexão geoestratégica do que se passa actualmente, analisando o comportamento da China e dos Estados Unidos e as situações a que ambos os países chegaram, as características de cada um e a maneira como encaram os grandes desafios do tempo presente, da ameaça terrorista aos problemas ambientais. No final do livro o autor deixa este recado: “o desafio que as alterações climáticas representam é simples: conseguiremos nós demonstrar que continuamos a ser a espécie mais inteligente do planeta Terra e preservá-lo para as gerações futuras? Os seres humanos olhariam cheios de pena para quaisquer das tribos de símios que continuassem a lutar pelo domínio do território enquanto a floresta em volta ardia. Contudo é assim que os Estados Unidos e a China surgirão às gerações futuras se continuarem a dirigir o foco para as suas diferenças enquanto o planeta Terra enfrenta um longo período de grande perigo”. E conclui o livro com esta frase: “A derradeira questão, portanto, não se centra em saber se os Estados Unidos ou a China venceram. Centra-se em perceber se a humanidade venceu”.
SALICÓRNIA CONFINADA COM ARROZ - Gosto de arroz de todas as maneiras - simples, ou numa das muitas variedades temperadas da cozinha tradicional portuguesa. A minha preferência mais recente vai para arroz de salicórnia, essa planta que cresce espontaneamente em ambientes salinos, como nas rias da costa portuguesa. Tem caules carnudos, há quem lhe chame espargos do mar. A salicórnia é uma planta suculenta com sabor salgado, mas só há relativamente pouco tempo começou a ser mais fácil de encontrar nos supermercados - nas lojas de produtos biológicos já existia há algum tempo. Vamos então à receita, com arroz carolino naturalmente. De há uns tempos a esta parte abandonei os refogados tradicionais e coloquei a cebola e o alho de lado. Uso muitas vezes funcho e gengibre picados salteados em azeite para dar um toque inicial, antes de adicionar o arroz e depois a água da sua cozedura - gosto dele malandro mas sem demasiada calda. Neste caso de arroz de salicórnia não adiciono sal. Só coloco a salicórnia, numa quantidade generosa, a meio da cozedura e envolvo-a bem no arroz. É também pouco depois, a uns três minutos do final da cozedura, que adiciono lingueirão - uso o congelado sem problemas, tendo o cuidado de o deixar ir à temperatura ambiente antes de entrar na panela. O lingueirão coze depressa e conserva melhor o seu sabor se não estiver muito tempo ao lume. Como qualquer arroz, devemos deixá-lo a repousar, tapado, já de lume desligado, pelo menos uns cinco minutos antes de servir. O tempo de preparação ronda a meia hora. Um Alvarinho a acompanhar fica sempre bem. Bom apetite. E divirtam-se. Cozinhar petiscos ajuda a combater o stress.
DIXIT - “Não se tratou de um acidente, mas sim de um atentado, embora não dirigido necessariamente a Francisco Sá Carneiro” - Marcelo Rebelo de Sousa
BACK TO BASICS - “Aquilo que está feito não pode ser desfeito” - William Shakespeare
POLÍTICA & TRAPALHICE - Em 1875 Rafael Bordalo Pinheiro criou a personagem de Zé Povinho que rapidamente ganhou o estatuto de personificação da crítica social e política dos portugueses a quem mandava no país. Tenho para mim que esse olhar sobre Portugal, ao mesmo tempo com humor e sem tibiezas, é hoje personificado por Ricardo Araújo Pereira. Na emissão de Domingo passado de “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, RAP passou imagens da votação no parlamento do Orçamento de Estado onde era patente a falta de cuidado de alguns deputados, o desnorte da mesa da Assembleia, em suma uma situação que faz jus ao nome do programa. De facto, se numa das mais importantes votações de qualquer sessão legislativa se passa o que o programa mostrou, só podemos estar perante uma falta de respeito pelos cidadãos. O Parlamento reflecte o estado da política e dos políticos, é o espelho do funcionamento do sistema. Quando acontecem cenas como as que foram mostradas é sinal de que algo está muito mal. Este ano o debate sobre o Orçamento parecia o palco de uma ópera buffa - inflexões, negociatas, arrufos e namoricos, intrigas, separações e zangas. As divergências são boas, os consensos são desejáveis, mas o retrato de golpes e contragolpes faz mal a um sistema que já está doente. Nestes tempos passou a ser normal fazer política pensando pouco no país e muito nos interesses de grupo ou pessoais. O poder não se deseja para servir o país e os cidadãos, pretende-se para satisfazer clientelas e proteger correlegionários. Enquanto isto não mudar a nossa vida vai ser complicada. As estatísticas não mentem. Mesmo sem pandemia o estado de saúde de Portugal é fraco, a debilidade continua. Penso nas imagens que vi, na maneira como decorreu o debate do Orçamento de Estado e temo o pior sobre a aplicação do dinheiro da célebre bazuka que vem da Europa. É que estas coisas andam todas ligadas. Numa semana que tanto se falou de pensar Portugal talvez seja bom vermos o que fazer para podermos funcionar melhor.
SEMANADA - O PS aceitou 198 propostas de alteração ao Orçamento de Estado de 2021 e foram aprovadas, contra a vontade do PS, 82 propostas; o PS voltou a subir nas sondagens e o PSD a cair; no processo de liquidação do Banco Privado Português foram detectados desvios no valor de 11,6 milhões de euros que terão ido para a esfera pessoal de alguns dos administradores do banco; nas principais redes sociais os partidos com assento parlamentar têm 1,8 milhões de seguidores, 70% dos quais no Facebook, 17% no twitter e 13% no Instagram; a Iniciativa Liberal é o partido que mais interacções gera nas três redes sociais agora analisadas num estudo relativo a este ano; há 12 anos consecutivos que há mais mortes do que nascimentos em Portugal mas este ano estamos a bater o recorde do saldo natural negativo; a Web Summit, que este ano se realiza exclusivamente on line e sem público nem visitantes, custará à Câmara Municipal de Lisboa os mesmo 3 milhões de euros das edições anteriores que trouxeram milhares de pessoas à cidade; a candidata presidencial Ana Gomes tomou uma vacina contra a gripe que uma amiga lhe trouxe de França; os bancos emprestaram 976 milhões de euros para a compra de casa em outubro, feitas as contas dá mais de 31 milhões de euros por dia, trata-se do valor de financiamento de crédito à habitação mais elevado desde janeiro.
ARCO DA VELHA - Estar infetado com Covid-19 ou estar a cumprir um período de isolamento profilático não chega para justificar o adiamento dos exames de Código ou de Condução e nessas situações os candidatos estão a ser obrigados a pagar para que as provas sejam remarcadas.
UM RUSSO E UM FRANCÊS OLHAM PARA LISBOA - Tempos difíceis estes para ver exposições com todas as limitações de horário e de circulação que existem. A boa notícia é que há muito para ver. Comecemos pela Galeria Balcony. Nikolai Nekh nasceu na Rússia em 1985, mas estudou Arte e Multimédia na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. A fotografia é o meio que utiliza e “Surender Surender”, a exposição que agora inaugurou em Lisboa parte da observação da transformação da cidade onde vive (na imagem). Há cerca de dois anos, Nikolai Nekh começou a aperceber-se da acumulação de objectos de mobiliário, como bancos, cadeiras, mesas ou estrados, nas ruas que percorria entre casa, na zona de São Bento, em Lisboa, e o trabalho. Na altura, o crescimento económico, o aumento do turismo e a especulação imobiliária já eram evidentes na cidade, mas foi quando se deparou com os vestígios da renovação de apartamentos para aluguer temporário a preços altos que o artista se debruçou sobre o assunto. Esta exposição mostra a forma como Nikolai Nekh encara o confronto entre o desenvolvimento económico, científico e tecnológico e o desequilíbrio social e ambiental. A exposição fica na Balcony Temporary Art Gallery até 19 de Janeiro (Rua Coronel Bento Roma 12A). Na Galeria Francisco Fino (Rua Capitão Leitão 76, Beato, até 15 de Janeiro) pode ver “Entre Deux Eaux”, a segunda exposição de Adrien Mussika naquele espaço, fruto da sua visão de Lisboa, entre as águas do Tejo e do oceano onde o rio desagua. Até 15 de Janeiro. O russo fez fotografias sobre um discurso político, muito pré-covid e o francês sobre um devaneio intemporal. É uma velha disputa de estilos, mas vale a pena comparar. Outro destaque: no Projecto Travessa da Ermida, José de Guimarães mostra na exposição “Dioramas” um conjunto de instalações inéditas e peças de arte africana da sua coleção pessoal (até 9 de Janeiro, Travessa do Marta Pinto 21, Belém).
CANÇÕES SEM TEMPO - Samuel Úria gravou o seu primeiro disco em 2009 e chamou-lhe "Nem Lhe Tocava”, que na altura marcou terreno pelos arranjos inusitados e pela construção das canções. Agora, mais de uma década depois de ter começado, lançou “Canções do Pós-Guerra”, outro nome provocador, Samuel Úrias salientou numa entrevista recente: “marimbar-me para as expectativas pode ser a receita certa para eu não ficar acabrunhado em relação a fazer um disco. Não penso no público, faço o que quero”. Neste novo disco, editado pela Valentim de Carvalho, estão nove canções coerentes mas diversas, onde frequentemente se detecta alguma influência folk. Aqui coexistem baladas com o “Cedo” com revisitações de blues como em “Fica Aquém”. O título do disco, ainda segundo Úria, tem a ver com a ruptura em relação ao álbum anterior, mais pop e electrónico (“Carga de Ombro” de 2016). Entre as influências poéticas, Samuel Úria cita Elisabeth Bishop, Philip Larkin, Ted Hughes e Leonard Cohen. As letras de Samuel Úria deixam marca, mostram o que ele pensa, não são rimas soltas. Por exemplo, em “As Traves” sublinha: “Tenho a vista cansada de tanto apontar para longe de mim/ E as traves nos olhos já dão de si/ Agora eu não dou conta de nada” . “Canções do Pós Guerra” é um disco intemporal, mistura estilos e influências, mas não vai em modas. Úria conta que foi para estúdio, antes da pandemia, com as canções apenas à guitarra e voz e aí começou o trabalho com o produtor Miguel Ferreira, que é também um dos músicos convidados. Aos poucos acrescentaram ideias à base acústica, procurando não deturpar a ideia original de cada tema. “Andámos ao sabor das canções”, conta Úria na mesma entrevista. O disco tem participações especiais da cantora Monday (Catarina Falcão) e de Miguel Araújo. Disponível em CD e no Spotify.
SOBRE O TRABALHO - O nº10 de “Electra”, a revista trimestral da Fundação EDP, começa com um texto que evoca a construção da Central Tejo no início do século XX, criando a grande fábrica produtora de energia eléctrica que abastecia a cidade e a região da Grande Lisboa. O texto, que evoca a ligação entre o homem e a máquina, o trabalho e a técnica, é acompanhado por uma selecção de fotografias da colecção de Kurt Pinto, depositadas na Fundação EDP e que são um documento único da construção e laboração da Central Tejo. Esta edição do Outono de 2020 da “Electra” tem por tema o trabalho e todas as suas implicações no mundo contemporâneo, a maneira como se transformou e, na situação actual, como coexiste com a devastação provocada pela pandemia. A “Electra” tem uma edição e grafismo exemplares e utiliza nesta edição fotografias de Alan Sekula e ilustrações de Konrad Kalpheck. Destaque para um artigo de Jason Read que analisa a série televisiva “Breaking Bad” à luz da representação do trabalho na personagem do professor de química que se torna um barão da droga. Destaque ainda para o portfolio de fotografia de Alec Soth, um dos nomes mais importantes da fotografia americana contemporânea, “Unseen Teen”, apresentado por Sérgio Mah.
IDEIAS PETISQUEIRAS PARA O CONFINAMENTO - Como nestes dias próximos a única solução é comer em casa, aqui ficam duas sugestões, simples. A primeira é mais de peso e retoma a velha ideia de massa com queijo. A segunda é um petisco para aperitivo. Comecemos pelo lado pesado. Primeiro preparam a base do molho com uma chávena de leite, temperado com sal, pimentão doce fumado e pimenta negra moída na altura, no qual dissolvem uma embalagem de mozarella gratinado, daquele que se usa para colocar nas pizzas. Uma alternativa lusitana, mais intensa, é cortar aos pedaços queijo da ilha de média cura e fazer o mesmo. Em qualquer dos casos no fim adicionam uma embalagem de queijo creme, tipo Philadelphia. Deixam tudo derreter bem e ficar cremoso. Entretanto cozem meio pacote de macarrão, mas não o deixam ficar mais de quatro minutos na água a ferver para permanecer “al dente”. Depois deitam um pouco do molho num recipiente de ir ao forno, colocam macarrão e o resto do molho por cima em camadas alternadas de forma a acabar com queijo. Fica no forno pré aquecido a 200º durante dez minutos para o molho derreter bem a acabar de cozer a massa. Está pronto a servir. Antes disso sugiro uma entrada - pegam numa embalagem de corações de alcachofra que escorrem e cortam aos pedaços. secam bem com papel de cozinha e levam os pedaços salpicados de azeite ao forno bem quente num tabuleiro. Quaisquer 18 a 20 minutos devem chegar para as alcachofras em pedaços ficarem tostadas. É deixar arrefecer e usar como aperitivo.
DIXIT - “Se não há cão, haverá gato, mas vamos fazer” - António Costa sobre a aprovação no parlamento da proposta que impedia a injecção de mais dinheiro no Novo Banco.
BACK TO BASICS - “Na literatura, tal como no amor, surpreendemo-nos com as escolhas que as pessoas fazem” - Andre Maurois
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