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Do que tenho visto a campanha eleitoral está a assemelhar-se ao monótono desenrolar de um torneio de matraquilhos. As equipas atacam-se reciprocamente no meio campo, mas cada vez marcam menos golos. A comparação com o futebol não é um devaneio. As circunstâncias ditaram que há meio século, depois do 25 de Abril, se criassem (ou ressurgissem) uma série de partidos que durante a ditadura estavam naturalmente escondidos, por vezes adormecidos e, noutros casos, inexistentes e que entretanto foram criados. A forma rápida como tudo se desenrolou em 1974 e 1975 levou a população portuguesa, nas eleições mais participadas de sempre, a escolher o partido em que iriam votar e uma grande parte dos eleitores ficou ainda nesses tempos. 50 anos depois nem os partidos são os mesmos, nem aqueles que continuam a existir são iguais. Como dizia Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/muda-se o ser, muda-se a confiança/todo o mundo é composto de mudança/tomando sempre novas qualidades”. Só que, fruto desse entusiasmo dos primeiros tempos, a simpatia por um partido transformou-se frequentemente em fanatismo - e o duelo político passou a ser uma luta clubística. Tudo isto, associado a uma Lei Eleitoral caduca, inexplicavelmente quase sem mudanças durante um meio século em que todos os hábitos de comunicação e dinâmica social se modificaram, levou a que hoje haja muita gente que rejeita liminarmente a possibilidade de coligações entre projectos diferentes. Lá no fundo argumentam contra uma cultura de entendimento político e em defesa de uma política de confronto, e dizem que não faz sentido arranjar um acordo entre o Sporting e o Benfica para definir quem vence o campeonato. Só que a política não é futebol e transportar a rivalidade desportiva, saudável, para a política, é um mau serviço para o país. O resultado é o fraco jogo de matraquilhos em que as campanhas eleitorais se foram transformando.
OS PARADOXOS DA RTP - Sugiro que nos dias 25 e 26 de Abril vejam o novo documentário de António Barreto, “Rumo à Liberdade”, que está dividido em duas partes e que será emitido na RTP Memória nesses dias. O documentário mostra a visão de Barreto sobre o balanço do que aconteceu desde o 25 de Abril de 1974, uma ideia incómoda para muita gente que entende que “falta cumprir Abril”. António Barreto é claro sobre essa ideia: “É uma tolice absoluta. O que Abril tinha para dar está dado: democracia, liberdade, libertação dos presos políticos… tudo o resto é o processo social normal, são as nossas escolhas.” Esta ideia atrapalha muita gente, sobretudo à esquerda do PS, no Livre, no Bloco de Esquerda e no PCP. Dito isto convém elogiar o trabalho de dois quadros da RTP que permitiram, com o seu trabalho num caso, e a sua decisão noutro, que o documentário existisse: António Faria, um especialista na pesquisa dos arquivos da RTP desencantou as imagens que constituíram o alicerce do trabalho depois desenvolvido por António Barreto; e Gonçalo Madaíl, porventura o mais ousado e criativo dos responsáveis de programas da RTP, convidou António Barreto a fazer o documentário e encomendou-o, assumindo os custos da produção no magro orçamento do canal que dirige, o RTP Memória. Aqui começa outra história. Se a RTP fosse uma empresa onde as produções fossem coordenadas e não existisse uma guerra de capelinhas, a pesquisa de António Faria e a visão de Gonçalo Madaíl seriam utilizadas para dar outra difusão à peça mais importante que a RTP tem para transmitir em mais este aniversário do 25 de Abril. Mas não, o documentário será estreado na RTP Memória, claro que ficará disponível na plataforma digital RTP Play e será transmitido, obviamente em data ainda não decidida, nessa aberração de programação que é a RTP3, que já é o menos visto de todos os canais informativos nacionais. Deixem-me enquadrar a coisa: a RTP produziu um documentário que dá uma nova visão, politicamente incómoda para alguns, e vai estreá-lo num canal que praticamente não tem audiências, a RTP Memória: 0,1% de share médio de audiência desde o início do ano. O perfil demográfico do canal indica que ele é visto por 12% de pessoas abaixo dos 54 anos, precisamente aqueles que mais tinham a ganhar em conhecer a tese de Barreto sobre o 25 de Abril, por cerca de 50% entre os 55 e os 74 anos e os restantes 38% acima dos 75 anos. Acham que isto faz sentido? Os segmentos etários que mais tinham a ganhar em saber o que aconteceu estão longe do canal onde vai ser exibido. Será isto serviço público de televisão?
SEMANADA - Desde 2006 as parcerias de universidades portuguesas com universidades norte-americanas, agora postas em causa pela administração Trump, já implicaram gastos para Portugal de mais de 300 milhões de euros “num processo deficientemente avaliado”, segundo o Professor Carlos Fiolhais; em Março os portugueses fizeram mais de 14 milhões de downloads de podcasts, uma média de 3,4 milhões por semana, o que significa um aumento de 10,9%face ao mês anterior, indica a Marktest; em 2024, segundo o Estado Maior General das Forças Armadas, 9.843 jovens candidataram-se às Forças Armadas portuguesas, um aumento de 23,8% face a 2023; em março 2342 pessoas continuavam internadas no Serviço Nacional de Saúde por falta de sítio para onde irem, mais 8% do que no ano passado e, em média, ficam nos hospitais cinco meses após a alta clínica; maus tratos ou discriminação afectam 44% das crianças com necessidades específicas; segundo a APAV registaram-se 5100 crimes sexuais contra menores nos últimos três anos, um aumento de 48% nesse período; o fime “Minecraft”, baseado no jogo com o mesmo nome, já teve cerca de 300 mil espectadores em Portugal em pouco mais que duas semanas; em 2024 registaram-se 600 vítimas mortais em acidentes rodoviários, das quais 100 em atropelamentos; em 2024 os autocarros da Carris, em Lisboa circularam à mais baixa velocidade de sempre, 13,71 khs/h e as interrupções por estacionamento indevido aumentaram 21,2%.
O ARCO DA VELHA - No recente congresso do Livre um militante sugeriu dar cidadania portuguesa a todos os bebés nascidos em Olivença.
PARA ALÉM DA REALIDADE - O MAAT apresenta, pela primeira vez em Portugal, uma exposição do fotógrafo norte-americano Jeff Wall, com 63 das suas obras, realizadas entre 1980 e 2023 e que ocupam totalmente o espaço MAAT Gallery. Jeff Wall, actualmente com 78 anos, foi o precursor daquilo que ele próprio intitulou como “cinematografia”: ele procura reproduzir cenas quotidianas mas também situações imaginárias construídas em estúdio num processo laborioso e que envolve uma equipa considerável, desde iluminadores a cenógrafos, passando por figurinistas. De certa forma Wall vai buscar a sua ideia de fotografia ao cinema, mas usando actores não profissionais que recriam cenas do quotidiano em cenários minuciosamente concebidos. Ao longo dos tempos a fotografia tem sido utilizada para mostrar instantâneos e a realidade, ou para servir de suporte à captação de imagens encenadas ou totalmente criadas expressamente para serem fotografadas, como as que estão nesta exposição. Jeff Wall é um dos fotógrafos cuja obra tem sido mais exposta internacionalmente e cujos preços de venda em leilão atingem maiores valores. Ao mesmo tempo que imaginava estas imagens Wall fez também fotografia documental e, a partir dos anos 90, trabalhou igualmente com preto e branco, além das fotografias coloridas, em transparências retroiluminadas ou impressas em papel, sempre em grandes dimensões, como esta aqui reproduzida, e que na exposição é apresentada como uma transparência montada numa caixa de luz de 174x257 cms. A obra de Jeff Wall obriga-nos a repensar o que é a fotografia, quais os seus limites e possibilidades enquanto ferramenta criativa, que não tem de se cingir à realidade. Esta exposição do MAAT, “Jeff Wall. Time Stands Still. Fotografias, 1980–2023”, é comissariada por Sérgio Mah e pode ser visitada até 1 de Setembro.
ROTEIRO - O Arquivo Ephemera e a Câmara Municipal do Porto apresentam até 30 de Junho, nos Paços do Concelho da cidade, a exposição “Francisco Sá Carneiro e a Construção da Democracia Portuguesa”. O grosso dos materiais expostos são do espólio de Francisco Sá Carneiro, mas também dos espólios de Nuno Rodrigues dos Santos, Vítor Crespo, Mário Brochado Coelho e dos acervos e colecções de Conceição Monteiro, do Arquivo Ephemera, e de muitos militantes do PPD/PSD. Ali são apresentados em conjunto, pela primeira vez, centenas de documentos, manuscritos, fotografias, imagens, objectos, correspondência, livros, e periódicos que permitem compreender o papel de Sá Carneiro na luta pela democracia e na definição das bases programáticas do PPD. Outra exposição a não perder está até 31 de Maio na Sociedade Nacional de Belas Artes “Bonecos Para o Povo” que apresenta material relacionado com o trabalho gráfico de João Abel Manta nos anos de 1974 e 1975, e também ao longo de diversas fases da sua carreira, incluindo vários trabalhos nunca expostos. João Abel Manta teve sempre uma importante colaboração com a imprensa e orgulhava-se de os quiosques de jornais com os seus desenhos nas primeiras páginas e os muros e paredes com os cartazes que fez, serem o local onde o seu trabalho podia ser visto.
HAVERÁ VIDA FORA DA TERRA? - “Neste livro acompanho o leitor numa viagem excitante e surpreendente em busca da vida no cosmos” - é assim que nas palavras da própria autora, a geofísica Lisa Kaltenegger, é apresentado “À Descoberta pela Vida no Cosmos”. Segundo ela este é um guia para saber “o que os cientistas estão a aprender acerca da história do nosso planeta e da sua surpreendente biosfera” mas também a investigação sobre a possibilidade de vida noutros planetas. “ Os meus dias são passados a tentar perceber como encontrar vida em mundos extraterrestres, em colaboração com equipas de cientistas tenazes”, conta. A autora explica como ela e a sua equipa procuram vida no cosmos, qual o limiar do conhecimento, o que é a definição de vida. Com uma escrita clara a autora discute os melhores candidatos a planetas habitáveis e mostra-nos como a ficção científica se aproxima cada vez mais da realidade. Lisa Kaltenegger é astrofísica e diretora fundadora do Instituto Carl Sagan, na Universidade de Cornell. O livro é editado pela Casa das Letras.
A GUITARRA VAGABUNDA - A minha banda sonora desta semana tem sido “Dissidente”, o novo disco do guitarrista Tó Trips que com Pedro Gonçalves moldou o som dos Dead Combo. Agora a sua guitarra é acompanhada pela bateria de Alexandre Frazão, o contrabaixo de António Quintino e o violoncelo de Helena Espvall. Mas, como sempre, o que se evidencia, nos quase 50 minutos e 18 temas deste novo disco, é a sonoridade muito especial que Tó Trips consegue extrair da sua guitarra, percorrendo composições originais, muitas vezes inspiradas em tangos, fados ou mornas. É uma música quente, frequentemente visceral, com um ritmo contagiante. Disponível nas plataformas de streaming.
ALMANAQUE - Até 9 de Junho quem fôr a Amsterdão poderá ver a maior exposição de sempre de um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos, o escultor e pintor alemão Anselm Kiefer. Intitulada “Sag mir wo die Blumen sind“ (Diz-me onde é que estão as flores) a exposição está no Stedelijk Museum Amsterdam, que cedo começou a comprar obras de Kiefer, ajudando-o a ganhar notoriedade, uma colecção que agora é apresentada em conjunto pela primeira vez, ao lado de outras obras provenientes de diversos empréstimos e de novos trabalhos de Kiefer feitos propositadamente para o Museu e para esta mostra. A exposição prolonga-se pelo vizinho Museu Van Gogh, um artista que Kiefer refere como uma das inspirações para a sua obra e, ali, algumas das mais célebres obras de Van Gogh são apresentadas ao lado de pinturas de Kiefer.
DIXIT - “Dispensamos demagogia e sonhos de um amanhã luminoso e de grande prosperidade quando o que cada um de nós prevê são dias cheios de dificuldades e de problemas, alguns dos quais nem temos dados para poder formular” - Eduardo Marçal Grilo, sobre a campanha eleitoral em curso
BACK TO BASICS - “Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação” - Fernando Pessoa
A ESQUINA DO RIO É PUBLICADA SEMANALMENTE, ÀS SEXTAS, NO SUPLEMENTO WEEKEND DO JORNAL DE NEGÓCIOS
O que eu gostava de ter num ovo da Páscoa era a certeza de que Lisboa era menos caótica em ruído. Segundo a Organização Mundial da Saúde o ruído é o factor de risco ambiental mais subestimado e só na Europa, de acordo com dados da Agência Europeia do Meio Ambiente, são registados 48 mil novos casos de doenças cardíacas por ano, provocadas pelos níveis de stress associados ao ruído,. Segundo a Agência Portuguesa do Ambiente 20% da população está exposta a níveis sonoros causadores de perturbações no sono e 15% tem exposição a níveis associados a incomodidade moderada. As recomendações da Organização Mundial da Saúde, em termos de decibéis (db) indicam que o nível médio de ruído para o trânsito rodoviário não deve passar de 53 db durante o dia, caindo para 45 db à noite. No entanto, em algumas zonas de Lisboa o ruído associado ao trânsito automóvel intenso pode chegar aos 85db. Uma sirene, sozinha, chega aos 120 db. E os aviões? Há cerca de 400 mil pessoas, cerca de 4% da população portuguesa, que vivem num raio de 5 km do aeroporto Humberto Delgado em Lisboa e que estão particularmente expostas ao ruído provocado pelos aviões. Há zonas da cidade, como Campolide, onde este coelhinho da fotografia passa os dias, em que nas épocas altas de turismo a frequência das passagens de aviões é insuportável e muitas vezes registam-se mais voos nocturnos que era suposto, provocando distúrbios do sono. Por isso o coelhinho da Páscoa acorda mal disposto e pior ainda fica quando não pode ir a uma esplanada sem estar sempre a ouvir aviões por cima de si, frequentemente várias vezes por minuto, impedindo qualquer conversa namoradeira. Há coisa menos romântica que tanto ruído?
CONTRADIÇÕES - Cada vez que há eleições lá vou eu fazer uma peregrinação pelos programas dos principais partidos, procurando o que dizem sobre política cultural. Todos garantem querer o bem do mundo e que toda a gente seja muito culta. Mas na realidade, como se tem visto ao longo deste primeiro quarto do século XXI, quase nada de novo surgiu. As reformas que se fazem são orgânicas, burocráticas e por vezes têm até resultados negativos. As promessas são sempre subsídios a atribuir sobretudo para as artes performativas, mas sobre incentivos a uma maior participação dos privados nesta área muito pouco se fez. Entretanto os Museus continuam com reduzida autonomia financeira (quando a têm), a Lei do Mecenato teve tímidas actualizações e os Primeiros Ministros, todos e sem excepção, gostam de usar a Cultura apenas como uma flor na lapela e não hesitam em ultrapassar quem dirige o sector. Na realidade quem inviabiliza reformas de fundo e de facto manda na Cultura, ao longo dos últimos anos, não é quem assume o cargo de Ministro da pasta, mas sim o Ministro das Finanças, com a cobertura do Primeiro Ministro. Todas as tentativas de incentivar privados a investir na área, alargar a Lei do Mecenato e torná-la mais atractiva, esbarram aí, nas Finanças. Agora, em plena campanha eleitoral conheceu-se um exemplo do que é o efectivo desprezo do Governo sobre o papel da iniciativa privada na Cultura. Digo isto a propósito das galerias de arte, cuja actividade é crucial para divulgar e vender as obras de artistas plásticos, emergentes ou consagrados, sendo para muitos a principal fonte de rendimento. Além disso, várias galerias desempenham um papel de divulgação da cultura e dos artistas portugueses por esse mundo fora, nas feiras de arte contemporânea, com uma actividade mais constante e relevante que o Estado. Pois eis que, poucos dias depois de a ministra da Cultura ter sublinhado a importância de baixar para 6% o IVA nas transações de obras de arte, indo ao encontro de uma Directiva da União Europeia, o Governo português decidiu tornar menos competitivo este sector e publicou o Decreto-Lei n.º 33/2025 de 24/03, que eleva o IVA nas transações de obras de arte, de um valor que andava entre 11,5 e 14,5% para 23%, objectivamente aumentando o preço a pagar por quem compra arte e estreitando o mercado. E quem assina este Decreto Lei? O Primeiro Ministro, o Ministro das Finanças, o Ministro da Economia e o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Como acreditar no programa de um partido que quando está no poder legisla sobre os impactos da atividade económica na Cultura sem envolver a Ministra da tutela nas decisões que toma?
SEMANADA - Os museus portugueses, públicos e privados, registaram, em 2023, 18,1 milhões de visitantes (+14,7%), dos quais 8,6 milhões de visitantes estrangeiros (+12,7%); as 75 370 empresas de atividades culturais e criativas, ativas em 2022, geraram 8,1 mil milhões de euros de volume de negócios, mais 21,5% do que em 2021; em 2023, o emprego cultural foi estimado em 201 000 pessoas, representando 4,0% do emprego total; apesar destes números o sector da Cultura representa apenas cerca de 0,4% da despesa total consolidada da administração central; em 2023, existiam 18 074 empresas do sector desportivo que geraram 2,8 mil milhões de euros de volume de negócios; em 2023, o financiamento das Câmaras Municipais às atividades e equipamentos desportivos aumentou 16,0%, para 426,5 milhões de euros: cerca de sete milhões e portugueses utilizaram a internet em 2024 e metade das pessoas entre 16 e 74 anos fizeram compras pela internet nesse ano; em 2024 cerca de 35% dos portugueses não tinham capacidade para pagar uma semana de férias fora de casa; a habitação significa cerca de 40% da despesa média das famílias; em 2023 Portugal era, a par de Espoanha, o país da União Europeia com maior proporção de pessoas sem capacidade financeira para manter a casa convenientemente aquecida.
O ARCO DA VELHA - Cerca de dois mil portugueses foram deportados nos últimos seis anos e em 2024 houve 387 portugueses deportados, mais 117 do que no ano anterior.
UM CRIME NUMA SALA FECHADA - Manuel Vásquez Montalban é um dos grandes escritores espanhóis, criador da figura do detective galego Pepe Carvalho. Em 1981, Montalbán escreveu “Assassinato no Comité Central”, uma das suas obras mais marcantes, agora reeditada com nova tradução de Manuel Seabra. O livro foi escrito na época de transição do franquismo para a democracia numa altura em que o Partido Comunista de Espanha era ainda influente, do ponto de vista eleitoral e sindical - influência entretanto desaparecida. A história é simples: numa reunião do Comité Central, realizada num hotel madrileno, ocorre uma falha de energia, a luz é cortada durante escassos três minutos, e quando se restabelece o secretário-geral do partido está caído, esfaqueado no coração. A sala estava fechada, lá dentro apenas as dezenas de membros do Comité Central. Quem matou o Secretário-Geral? A investigação oficial foi entregue ao comissário Fonseca, um polícia franquista, o que indispõe os comunistas, que contratam um detetive privado, Pepe Carvalho, catalão de origem galega, ex-comunista, ex-agente da CIA, gastrónomo que quando não persegue iguarias, consegue desvendar mistérios com a ajuda de petiscos que vai procurando. Pepe Carvalho descobre como as convulsões ideológicas do Partido Comunista, a luta entre as diversas sensibilidades e facções no seu interior e as clivagens na política espanhola da época se conjugam para fazer acontecer a misteriosa morte. O livro é um retrato brilhante da forma de pensar e de agir de quem dirigia os partidos comunistas e é também um policial delicioso. Edição Quetzal.
AS INFINITAS POSSIBILIDADES DO PAPEL - “Sobre Papel, 1953-2025” é o título da nova exposição na galeria Rui Freire Fine Art (Rua Serpa Pinto 1C, ao Chiado), que até 18 de Maio apresenta obras de Manuel Caldeira, Jean-Charles de Ravenel, Jorge Nesbitt, Pedro Quintas, Roberto Ruspoli, Bruno Castro Santos, Hanns Schimansky, Bela Silva, Vieira da Silva, Loló Soldevilla e Arpad Szenes (na imagem), e também de Pedro Casqueiro, Daniela Krtsch e Cristina Lamas. Todos os trabalhos apresentados têm como suporte o papel e foram criados entre 1953 e 2025. A exposição mostra 22 obras que evidenciam as diversas possibilidades de trabalho sobre papel, desde composições geométricas, ao traço do desenho (de Roberto Ruspoli por exemplo) , passando por obras que exploram a criação de camadas e volumes (como Hanns Schimansky), mostrando a plasticidade e capacidade de adaptação do suporte. A Rui Freire Fine Art foi criada em 2018, inicialmente sob o nome da galeria Jeanne Bucher Jaeger, de Paris, onde Rui Freire exerceu funções como diretor. A galeria representa artistas nacionais e internacionais e desde 2019, colabora com a organização americana Parley For The Oceans, que desenvolve projetos de grande escala com artistas como Katharina Grosse e Vik Muniz, entre outros.
ROTEIRO - O destaque da semana vai para a exposição “Caminhos da Floresta” de João Louro, na Galeria Fernando Santos (Rua Miguel Bombarda 526, Porto). A exposição mostra obras recentes, de escultura e pintura (na imagem uma das obras, fotografada por Bruno Lopes) e pode ser vista até 7 de Junho. Em Lisboa, na Gulbenkian, duas novidades. No edifício principal, e com o pretexto do encerramento temporário do Museu para requalificação, algumas das obras mais importantes foram reunidas na exposição “Coleção Gulbenkian. Grandes Obras”, com mais de trezentas peças, da arte islâmica, à arte europeia e a arte da China e do Japão, num percurso que se inicia no século XX em direção à Antiguidade. No Centro de Arte Moderna a novidade, na nave principal, é uma exposição que coloca em confronto obras de Paula Rego com a artista brasileira Adriana Varejão. Sob o título “Paula Rego e Adriana Varejão. Entre os vossos dentes”, são apresentadas até 22 de Setembro cerca de 80 obras das artistas, entre pintura, gravura, escultura e instalação. Para finalizar, na No-No Gallery (Rua de Santo António à Estrela 39A) está em exposição, até 31 de Maio uma exposição com fotografias de Miguel Marquês, intitulada “Echoes From a Distant Time” , baseada na sua observação de um velho edifício desocupado.
MÚSICA DE HOTEL - The Los Angeles League of Musicians, também conhecido por LA LOM, é um trio constituído pelo guitarrista Zac Sokolow, o baixista Jake Faulkner e o percussionista Nicholas Baker. Começaram a tocar juntos em 2018 num hotel em Hollywood e no ano passado gravaram o seu primeiro álbum para a histórica editora Verve, LA LOM. Praticam uma música de fusão que tanto vai buscar inspiração às guitarras da Califórnia como a ritmos sul-americanos. O disco é um apelo à dança, constituído por 13 faixas que parecem saídas da banda sonora de um filme da série B. São 40 minutos deliciosos, de música muito bem tocada, aquele género que sabe bem ficar a ouvir ao fim da tarde com um copo na mão num dia de calor. Musicalmente o disco é uma homenagem à tradição pop americana e hispânica, inteiramente instrumental. Pontualmente os três músicos são acompanhados por convidados que complementam os arranjos com um piano e uma secção de cordas. Disponível nas plataformas de streaming.
ALMANAQUE - O quadro aqui reproduzido chama-se “Do Remember They Can’t Cancel the Spring” e foi pintado por David Hockney durante a pandemia, em Março de 2020, quando o pintor estava em confinamento na Normandia. O nome deste quadro é o título escolhido para a grande retrospectiva da obra de Hockney que está patente na Fundação Louis Vuitton, em Paris, até 31 de Agosto e que apresenta mais de 400 obras do artista nas 11 galerias do Museu, de todas as fases da sua carreira, desde as primeiras pinturas, do início dos anos 60. Hockney, agora com 87 anos, envolveu-se na concepção e montagem da exposição que permite seguir a evolução do seu trabalho, desde os desenhos e pinturas até à recente utilização de dispositivos digitais.
DIXIT - “ O conceito de accountability, ou seja, de responsabilidade objectiva, não existe para os nossos profissionais da política, que nunca fizeram nada na vida a não ser pendurados nos respectivos partidos” - Luís Todo Bom
BACK TO BASICS - Um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo, esperando ser o último a ser comido - Winston Churchill
A ESQUINA DO RIO É PUBLICADA SEMANALMENTE, ÀS SEXTAS, NO SUPLEMENTO WEEKEND DO JORNAL DE NEGÓCIOS
Neste início de primavera surgem algumas papoilas ainda tímidas, vergadas pelo vento e as chuvas fortes. Mas o que mais se vê pelas ruas das cidades, não são flores, são os cartazes que mostram as novas tendências de imagem dos líderes partidários nas legislativas de Maio. Nos últimos anos qualidade dos cartazes políticos tem vindo a baixar de forma acentuada e transversal a todo o leque partidário e esta colheita mantém o ritmo descendente. As campanhas eleitorais são feiras de vaidades onde os líderes partidários parecem modelos nas passerelles de uma produção de moda rasca, fantasias montadas num manequim de plástico. Parece que uma das tendências actuais é o recurso a grafismo feito com ajuda de Inteligência Artificial mal formatada. Por exemplo Pedro Nuno Santos aparece num dos primeiros cartazes como uma figura de museu de cera desenhada por um especialista em cartazes de circo. Do lado de Montenegro o mantra da sua imagem é o sorriso postiço que usa permanentemente, mas estar sempre com uma máscara de riso forçado para a fotografia não dá confiança a ninguém. A Iniciativa Liberal não está muito melhor - é certo que a coisa não é fácil quando Rui Rocha é tão pouco fotogénico e a mensagem tão vazia: um pedido de confiança, depois do voto da IL na moção de confiança de Montenegro, não é desígnio inspirador. Esperemos que este ano não voltem à asneira de enfiar nas caixas de correio imitações de intimações da Autoridade Tributária, uma das peças de propaganda política mais desajeitadas de sempre. Hoje em dia as campanhas e os seus cartazes são uma feira de vaidades onde o ridículo anda à solta e os debates são a montra onde se vendem saldos requentados. O circo começou, com devida desculpa aos verdadeiros artistas circenses.
O APARELHO - António Capucho deu uma entrevista ao “Público” no início desta semana onde sublinha a importância que tem uma solução governativa que garanta estabilidade e que permita um pacote de acordos de regime em algumas áreas essenciais, que nomeou, como a justiça, a educação, a saúde, a legislação eleitoral, a cultura e a administração pública. Mais, Capucho defende um acordo de incidência eleitoral entre PSD e PS, escrito, que garanta estabilidade e possibilite fazer reformas nas áreas indicadas. Na realidade este é o tema central destas eleições, mas nenhum dos candidatos a Primeiro-Ministro destes dois partidos mostra o mais leve desejo de o abordar e, suspeito, ainda menos de o concretizar. Claro que a certo ponto desta apressada campanha será necessário que cada um dos líderes diga, em relação ao outro, o que está disposto a fazer se o seu partido ganhar e deixar claro, se não for o vencedor, se viabilizará um governo que não o seu e se apresentará uma moção de censura. Isto não são questões bizantinas, embora o estado a que chegou o debate político em Portugal transforme em enormes dificuldades a política propriamente dita e sobrevalorize as diferenças e rivalidades, em vez de se preocupar em apontar para uma estratégia de resolução dos mais graves problemas do país. Uma boa prova disto é a questão da formação das listas eleitorais, que suscitou problemas e polémicas em todo o leque partidário e evidenciou o habitual caciquismo que é a regra de funcionamento sobretudo dos chamados grandes partidos. A este propósito o “Correio da Manhã” reportou por estes dias que quando José Eduardo Martins foi candidato à presidência da Assembleia Municipal de Lisboa e Teresa Leal Coelho, nas mesmas eleições, foi candidata à presidência da autarquia, ambos viram com espanto que as respectivas listas de putativos deputados municipais e vereadores social-democratas não tinham ninguém que tivessem indicado, não conheciam ninguém, sendo tudo escolhas do aparelho local do PSD, que entretanto se viu envolvido na operação “Tutti-Frutti”. Na realidade, como esse artigo dizia, “O líder de um partido pouco poder tem na elaboração de listas de deputados à Assembleia da República, o mesmo acontecendo com os candidatos autárquicos. Quem manda é o chamado “aparelho”, um grupo de pessoas que trata do quotidiano.”. Assim é mais fácil compreender o estado a que isto chegou.
SEMANADA - Segundo o IMT dos 37.495 motoristas de TVDE que trabalharam em Março 52% foram portugueses e 48% de outras 97 nacionalidades, com destaque para os brasileiros, indianos, paquistaneses e bangladeshianos; no último mês circularam nas estradas nacionais 34 447 veículos TVDE e o número de operadores válidos é de 11 894; as estatísticas oficiais indicam que em 2024 foram registados 16080 assaltos a casas, o que representa uma média de 44 destes crimes por dia; 497 desses assaltos foram feitos com moradores no interior das habitações; em 2024 foram registados 260 assaltos a automóveis com os condutores no seu interior, vulgo “carjackin”, quase sempre à mão armada; Ana Caldeira, uma advogada que era dirigente do Chega e vice-presidente do Conselho de Jurisdição do partido foi acusada pelos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos, acusada de tentar burlar um ex-sócio falsificando a assinatura de uma mulher que já tinha morrido "com o objetivo de fazer sua a quantia de seis mil euros"; um estudo recente indica que, em 2024, o investimento privado em Portugal correspondeu a cerca de 16% do PIB, dois pontos percentuais abaixo da média da União Europeia, sendo o quarto nível mais baixo do grupo dos países concorrentes; no mesmo ano o volume de investimento em capital de risco representava apenas 6,8 pontos-base do PIB em 2024, um valor substancialmente abaixo da média da União Europeia (13,2 pontos-base) e muito aquém de países concorrentes como Espanha ou Estónia; há 16 municípios no país onde mais de metade da população que trabalha no setor privado ganha apenas o salário mínimo nacional; os preços das casas em Portugal subiram mais do que o dobro da média da UE no final de 2024; a Parques de Sintra estima que na sua área de actuação 98 mil árvores caíram devido à tempestade e vento causados pela depressão Martinho; foram registadas 32 mil visualizações do vídeo da violação de uma rapariga de 16 anos em Loures e nenhuma das pessoas que o viu achou que o caso fosse suficientemente grave para o denunciar.
O ARCO DA VELHA - Nos últimos três anos, nos centros urbanos, morreram 757 idosos que viviam sozinhos em casa.
UM ROMANCE CHINÊS - Não me canso de dizer que hoje, mais que nunca, é importante percebermos a cultura chinesa. Ora, “No Fio Inconstante dos Dias - Memórias de Uma Vida Flutuante”, do chinês Shen Fu, uma obra que é considerada um clássico da literatura universal, foi agora editada pela primeira vez em Portugal e merece leitura. O livro foi escrito no século XIX, no auge da dinastia Qing, a última antes da proclamação da República da China em 1912. Shen Fu era um funcionário público, secretário de um magistrado e a primeira edição conhecida deste livro, no original “Seis Relatos de Uma Vida Flutuante”, data de 1870 mas as versões que chegaram até hoje, como esta, integram apenas quatro dos seis relatos originais, já que os dois últimos se perderam. A primeira tradução ocidental, em inglês, data de 1935. O livro é uma espécie de biografia de Shen Fu, contada em torno da história de amor do autor por Yun, a sua mulher, uma mulher rara nessa época, culta e que cultivava algum grau de independência.. Em torno do relato central por Yun, Shen Fu escreve sobre as frustrações que sente na sua profissão, a penúria financeira, o desalento que se vai estabelecendo na sua vida, mas também histórias de amor pela natureza, das artes e da poesia e da pintura, da inconstância política da época, da dependência de favores dos poderosos, mas também do universo de concubinas e cortesãs. Há um dado marcante para compreender a profundidade da escrita de Shen Fu: o funcionário público desse tempo, na China, tinha de ser alguém com um grau de instrução elevado, com um domínio da milenar tradição poética chinesa e que tinha responsabilidades práticas e éticas no seu trabalho enquanto secretário de um Magistrado. No fundo esta é uma história de amor mas também de sofrimento, de virtudes e de vícios, de generosidade e ganância, como faz notar o editor, Manuel S. Fonseca. E também uma forma de melhor perceber a tradição e a cultura milenares chinesas. Edição Guerra & Paz.
A MÁQUINA DO TEMPO - O destaque desta semana vai para “Ra” a nova exposição de Rui Toscano, que pode ser vista até 10 de Maio na Galeria Cristina Guerra (Rua de Santo António à Estrela 33). O título da exposição evoca a figura de Rá, uma das divindades maiores do antigo Egipto, símbolo do sol no seu zénite e que tinha uma força cósmica que regulava o ciclo da vida e da energia no universo. Na exposição destacam-se quatro desenhos projectados como imagens luminosas, compostos por figuras geométricas que se sobrepõem, explorando a capacidade de a luz ser utilizada como expressão da forma. A exposição inclui também quatro pinturas de diversos formatos, cada uma realizada numa cor primária (na imagem), evidenciando a sua intensidade. Nestas quatro pinturas surgem figuras humanas que dão uma dimensão narrativa, como se percorressem uma estrada aberta pelas formas geométricas das outras peças da exposição. Na folha de sala Luigi Fassi sublinha que as pinturas de Rui Toscano funcionam como máquinas do tempo imprevisíveis” através das quais “explora planos temporais sobrepostos e inidentificáveis, oferecendo olhares sobre épocas culturais distantes, aspirações tecnológicas obsoletas e paradigmas científicos distintos dos actuais”.
ROTEIRO - “Un antes siempre” é o título da exposição de Pedro Calapez no espaço Santa Catalina, uma antiga igreja dessacralizada, no centro histórico de Badajoz, que pode ser vista até 8 de Junho. As obras de Pedro Calapez contrastam com as paredes ocres do edifício e entram num curioso diálogo com os restos de frescos e murais que ainda se vêem nas paredes e que evocam pinturas de outras épocas (na imagem). A disposição das obras, umas isoladas outras agrupadas, proporcionam várias leituras e permitem ver como muitas vezes estão dependentes umas das outras e como que se completam nas formas e nas cores. Bem perto, no espaço.arte, em Campo Maior, Catarina Pinto Leite expõe "Não São Só Flores", um conjunto de obras em papel e tela, até 20 de Abril. Outro destaque vai para a exposição "Aula do Visível", que mostra obras da colecção Ilídio Pinho, uma das grandes colecções privadas de trabalhos de artistas portugueses. A exposição reúne mais de 120 obras de artistas como Vieira da Silva, Amadeo de Souza-Cardoso ou Paula Rego e pode ser vista até 31 de Maio no edifício Abel Salazar, da Universidade do Porto, junto à sua Reitoria. Duas notas finais: no Arquivo Municipal Fotográfico (Rua da Palma 246) pode ser vista até 12 de Abril “Ramot” uma exposição que mostra a importante obra de António da Costa Cabral. E na Brotéria, até 7 de Maio, pode ser vista uma exposição conjunta de Ana Jotta e Jorge Nesbitt intitulada “Conversations Pieces” na qual os dois artistas mostram objetos simples que formam um conjunto de peças em cerâmica apresentadas como personagens num palco inesperado.
PIANO E TROMPETE - O título do novo disco de Vijay Iyer, em dueto com Wadada Leo Smith, não esconde o que se vai ouvir logo nos primeiros acordes - “Defiant Life”. O primeiro tema, “Prelude:Survival” é simultaneamente incómodo e incontornável, com o trompete de Smith a romper de forma violenta a subtileza da forma como Iyer toca piano e órgão Fender Rhodes num diálogo duro que é o espelho dos tempos que vivemos,. A tensão criada entre os dois músicos prolonga-se no segundo tema, “Sumud” e, depois, nas restantes quatro faixas do disco, de cada vez que Leo Smith mostra a intensidade do seu trompete, somos levados num crescendo de descoberta do que pode ser a visão musical de um mundo caótico onde o próximo passo é imprevisível. Edição ECM, disponível em streaming.
DIXIT - “As principais ameaças contra a nossa liberdade serão, no imediato, os gananciosos, os maníacos partidários e os intolerantes” - António Barreto
BACK TO BASICS - “Música tocada ao jantar é um insulto quer ao cozinheiro, quer ao intérprete” - G.K. Chesterton
A ESQUINA DO RIO É PUBLICADA SEMANALMENTE, ÀS SEXTAS, NO SUPLEMENTO WEEKEND DO JORNAL DE NEGÓCIOS
Espreito por entre a nebulosa dos acontecimentos políticos dos últimos tempos e procuro vislumbrar o que se passa. Tudo me parece escuro, estranho, cheio de segredos, de manobras de oportunistas e habilidosos. Não entendo as crises artificiais. Recordo-me de uma entrevista recente de António Barreto ao “Diário de Notícias” onde faz este balanço do Governo de António Costa:“O governo socialista de António Costa tinha quase tudo de que se precisa: dinheiro, votos, apoio e expectativas sociais. E maioria parlamentar. Tinha boa reputação internacional. Tinha colaboração institucional e bom entendimento com o Presidente da República. Quase tudo se perdeu. É um dos maiores desperdícios da vida política nacional.” E é verdade, reside aqui o início de um dos períodos mais estranhos da nossa história recente - a passagem de uma maioria absoluta do PS a uma pequena maioria da Aliança Democrática ( na verdade essencialmente do PSD), o crescimento do Chega e a alteração da paisagem parlamentar. Que o Governo de Montenegro tenha durado um escasso ano (tomou posse a 2 de Abril de 2024…) mostra o desnorte dos dirigentes partidários, do PS e PSD, que no espaço de menos de menos de dois anos desencadearam duas crises políticas. Olho para as sondagens e é inevitável pensar que existe uma elevada possibilidade de das eleições de Maio próximo não sair nada de muito diferente do que existia - o que quer dizer que a instabilidade continuará. Com este comportamento, como se sentirão os eleitores, qual será o peso da abstenção? Cada vez é mais difícil ver uma luz ao fundo do túnel.
UMA ENTREVISTA INCONTORNÁVEL - No meio do imenso ruído dos comentários e da ocupação do espaço mediático a entrevista de António Barreto ao “Diário Notícias”, na semana passada, passou quase despercebida. E no entanto é das mais importantes e lúcidas análises do estado da sociedade, do funcionamento das instituições e do comportamento dos partidos. Barreto recorda alguns dados importantes sobre eleições recentes e os valores da abstenção, que já atingiram 45% nas autárquicas, 50% nas legislativas e 60% nas presidenciais, e sublinha que, nestas condições, é uma minoria de cidadãos e uma minoria de eleitores quem governa e decide sobre o país, enquanto a maioria dos cidadãos se desinteressa da política e democracia. Por outro lado, sublinha António Barreto, “os partidos, tal como os conhecemos há décadas, estão desajustados. Parecem ser apenas apreciados pelos seus membros. Quanto ao resto da população, são vistos como parasitas. Convém não esquecer que mais de 90% dos cidadãos e dos eleitores não são membros de partidos. As imagens e as percepções são eloquentes. Antes, eram as vanguardas ou as elites. Hoje são os oportunistas, os que não querem trabalhar, os que vivem à custa dos contribuintes.” Sobre as próximas eleições, António Barreto defende um governo de coligação nacional, com os dois maiores partidos, com um programa escrito, assinado e com validade para quatro anos“ e admite que gostaria “que aumentasse a força eleitoral da Iniciativa Liberal. Termino, citando o que António Barreto disse nessa entrevista sobre a justiça: “A legislação sobre a justiça é malfeita, complicada, obscura, pensada para agradar ora uns corpos profissionais, ora outros. Mas não tenhamos dúvidas: as culpas do mau estado em que se encontra a Justiça pertencem a ambos os lados, aos seus profissionais e aos políticos e legisladores. Tem-se a impressão de que a Justiça portuguesa evitou e resistiu à democracia.”
SEMANADA - O jogo ilegal online lesa o Estado em quase 250 milhões de euros; as apostas desportivas dão apoio de 70 mihões de euros ao desporto e as federações que mais recebem são as do futebol, ténis, basquetebol e desportos de inverno; no ano passado 28 recém-nascidos ficaram retidos na maternidade Alfredo da Costa em Lisboa por não terem casa para onde ir; em quatro distritos do interior uma em cada três escolas públicas do primeiro ciclo tem menos de 20 crianças; o preço das rendas de casa aumentou em 93% dos concelhos nacionais, subiu mais de 20% em 30 municípios e teve um aumento médio de 10,5% em todo o país; no ano passado foram reportados 543 crimes de violação, numero que compara com 494 em 2023; quase 9% dos arguidos por violação na última década são menores; em 2024 verificou-se um aumento de 30% no número de candidatos às Forças Armadas; depois de um recuo em 2023, a carga fiscal em Portugal registou durante o ano passado uma subida para 35,7% do PIB; os impostos directos, que incluem o IRS e o IRC, cresceram 3,5%, tendo os impostos indirectos, que incluem impostos como o IVA ou o ISP, subiram 7,2%, acima do ritmo de crescimento da economia; 40% dos desempregados não recebem subsídio.
O ARCO DA VELHA - Um homem criou um perfil falso no Tinder e marcava encontros com várias pessoas, sempre no mesmo café, e desmarcava os encontros quando as pessoas lá estavam há uma hora e já tinham consumido. Depois de recebida a desmarcação, pagavam e iam embora. O homem era o dono do café, algures no norte de Portugal, reportou a CMTV.
UMA GUERRA DIFERENTE - Esta é a história de um homem que ajudou a vencer uma guerra e que perdeu um combate pelo seu direito a viver como queria. Trata-se da história de Alan Turing – o famoso criptologista que decifrou o código da Máquina Enigma e, com isso, permitiu descodificar as mensagens dos alemães e conduziu os Aliados à vitória no final da Segunda Guerra. Apesar de ter contribuído de forma ativa para o desfecho da guerra na Europa, Alan Turing foi perseguido pela sua homossexualidade, submetido a castração química e inúmeras sessões de psiquiatria que o conduziram a grandes transformações físicas e mentais e à sua morte prematura, com pouco mais de quarenta anos, apontada como provável suicídio. É esta a história que o britânico Will Eaves nos conta no livro “Murmúrio”. Escrito em forma de diário e de cartas, “Murmúrio” relata, na primeira pessoa, o período que se seguiu à prisão, julgamento e condenação do célebre matemático, precursor da revolução tecnológica e da inteligência artificial. Alec Pryor, protagonista e narrador, inspirado na figura de Alan Turing nas cartas à amiga June ou nas anotações pessoais que redige, conduz-nos através do pensamento do matemático e da análise que faz da natureza da consciência humana, com considerações também sobre a inteligência artificial. O livro é uma viagem aos bastidores do seu castigo e o caminho de vergonha e exclusão que percorre, com enorme dignidade e aceitação. Edição Quetzal.
SILHUETAS DE PRAIA - “Entre Dois Grãos de Areia” é o título da nova exposição de José Luís Neto, patente da Galeria Miguel Nabinho (Rua Tenente Ferreira Durão 18B), até 24 de Maio. José Luís Neto estudou fotografia no ARCO e depois no Royal College of Art, de Londres e, como refere na sua biografia,tem desenvolvido um trabalho de investigação sobre a apropriação da imagem e os processos e dispositivos de registo da imagem fotográfica. Começou a expôr no início dos anos 90 e ao longo da sua carreira tem explorado a investigação da linguagem e natureza da fotografia. O seu trabalho baseia-se frequentemente na manipulação de imagens de arquivos fotográficos e até de fotografias que encontra na rua. Por vezes manipula as imagens, alterando cores e formas, prefere modificar a realidade a reproduzi-la. Nesta exposição “entre dois grãos de areia”, uma frase de Clarice Lispector, expõe 14 fotografias feitas ao longo de um período alargado de tempo e que têm em comum seram imagens de pessoas fotografadas em praias, transformadas em silhuetas anónimas que por vezes pouco mais são que manchas da forma humana. Como o texto de Filipe Pinto que acompanha a exposição sublinha, as silhuetas são uma interrupção na paisagem e situam-se no estreito limiar entre o que é conhecido e o que é irreconhecível. No YouTube está uma conversa de 15 minutos com o galerista Miguel Nabinho precisamente sobre esta exposição - pode ser vista em https://www.youtube.com/watch?v=biTyTP3XfL4 .
ROTEIRO - O primeiro destaque da semana vai para a exposição de Sebastião Casanova na Galeria Pedro Oliveira (Calçada de Monchique 3, Porto). Esta exposição, “Ma mort sera petite, comme moi” (na imagem), é apresentada como uma celebração da vida, do desejo, do prazer. Oscar Faria, que comissariou a exposição, afirma que a pintura de Sebastião Casanova é um alimento para o espírito e sublinha que o artista serve refeições visuais ao espectador. Em Lisboa, na Underdogs (Rua Fernando Palha, Armazém 56), o artista português Vhils convidou o artista francês JR e do convite resultou a exposição “Through My Window”, que mostra 36 litografias de grande formato e estará patente até 19 de Abril. Na Pequena Galeria (Avenida 24 de Julho) quatro fotógrafos (Fernando Penin Redondo, Fernando Ricardo, Francisco Prata e Marc Sarkis Gulbenkian ) expõem até 3 de Maio imagens de África. Na SNBA (Rua Barata Salgueiro 36) , até 26 de Abril Kenton Thatcher apresenta até 26 de Abril retratos feitos ao longo dos últimos 30 anos de artistas, escritores, personalidades desportivas e políticos. Por último na Galeria Imago (Rua do Vale de Santo António 50C), está até 3 de Maio a exposição “Fragmentos de Mim - ou a visibilidade do fotógrafo”, uma colectiva com trabalhos de 22 fotógrafos (entre os quais eu próprio, aviso já) que abordam a auto-representação, num desafio feito pela Associação Cultural CC11 e António Pedrosa, que seleccionou os trabalhos.
O REGRESSO DE BRYAN FERRY - Já se passaram 53 anos desde que os Roxy Music fizeram o seu revolucionário disco de estreia e que o seu vocalista, Bryan Ferry, se tornou notado. Ferry, quase com 80 anos, seguiu uma longa carreira a solo mas há 11 anos que não editava nenhum disco até surgir este “Loose Talk”, agora publicado. Trata-se de um disco feito em conjunto com Amelia Barratt, uma artista plástica, escritora e performer. É a primeira vez que Ferry faz música para palavras escritas por outra pessoa e o projecto começou quando Ferry e Barratt se encontraram na inauguração de uma exposição e decidiram trabalhar em conjunto. Ferry foi ao seu arquivo buscar composições instrumentais, inéditas, que foi fazendo ao longo dos anos e voltou a estúdio para as trabalhar, em colaboração com Paul Thompson, que foi baterista dos Roxy Music e com quem trabalhou ao longo dos anos. Amelia Barratt foi recebendo os temas musicais e escreveu onze histórias ficcionadas, na realidade pequenos contos, micro-ficções. Barratt diz essas histórias com uma voz neutra. Tudo é minimalista - a composição, os arranjos, a colocação da voz como se fossem monólogos em dueto. Disponível nas plataformas de streaming.
ALMANAQUE - A Albuquerque Foundation abriu as portas perto de Sintra em Fevereiro deste ano e alberga a importante colecção de cerâmica imperial chinesa do coleccionador brasileiro Renato de Albuquerque e é dirigida pela sua neta, Mariana Teixeira de Carvalho. A programação conjuga mostras de longa duração das peças da Coleção Albuquerque de Cerâmica Chinesa e exposições de artistas contemporâneos que atuam no campo da cerâmica. A Albuquerque Foundation fica localizada na antiga Quinta de São João, que foi recuperada e ampliada para acolher o conjunto de atividades e que conta com uma biblioteca especializada, o acervo da Coleção Albuquerque, uma loja que expõe e comercializa obras de ceramistas portugueses, e um café com terraço com uma vista para a paisagem de Sintra. Rua António dos Reis 189, aberto de terça a domingo entre as 10 e as 18h.
DIXIT - “O voto no PSD muda caras, mas não muda mais nada. Por vezes, mudar caras é suficiente. Mas Portugal está numa situação em que precisa de um pouco mais e em que até pode ter um pouco mais.” - Rui Ramos
BACK TO BASICS - “O sistema eleitoral português é construído não a partir das necessidades do sistema democrático, mas foi feito pelas necessidades dos próprios partidos” - Marcelo Rebelo de Sousa, na sua tese de doutoramento.
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