O TIRO NO PÉ
O campeonato nacional de tiro nos pés abriu no mês passado com a apresentação pública, pelo PSD, de uma proposta de privatização do serviço público de televisão. Sob um manto aparentemente muito liberal, e em nome da diminuição do peso do Estado, os responsáveis actuais do PSD fazem no fundo uma proposta conservadora e paralisante.
Vamos por partes: o que interessa, na realidade, é dar condições ao serviço público para poder ter uma programação mais variada e complementar em relação aos canais privados. Isto faz-se encarando de frente a questão do financiamento, retirando o operador do serviço público da esfera comercial e limitando a sua acção ao que é necessário.
E então, o que será necessário? - Do meu ponto de vista o serviço público deve proporcionar um acesso universal e gratuito - portanto a questão de serviço público com recurso a canais de cabo é, à partida, um contrasenso. Eu sou dos que pensam que o serviço público deve continuar a ter dois canais abertos, complementares, até porque dificilmente, a determinadas horas do dia – e nomeadamente em prime time – seria virtualmente impossível cumprir todas as suas obrigações apenas com um canal. Mas não vejo necessidade alguma na RTPN e, se vejo toda a razão de ser numa emissão internacional, continuo sem descortinar o porquê da RTP África.
Continuo a achar que o serviço público deve ter um papel estratégico no desenvolvimento do audiovisual português e da produção independente. Isto quer dizer que o serviço público devia deixar-se da megalomania produtiva que continua a ter (e os novos estúdios são um infeliz passo no reforço da capacidade interna de produção), devia encomendar mais, apostar mais na inovação, limitar a sua produção interna à informação e dinamizar o mercado das produtoras independentes em todos os outros géneros, documentários incluídos. A grande reforma que ninguém teve a coragem de fazer, e na qual, na minha opinião, radicam muitos dos problemas da RTP, é precisamente o tamanho da máquina e aquilo que ela tem de produzir para justificar a sua própria existência.
Mais do que falar na privatização da RTP, faz é sentido ver como ela deve reduzir a sua dimensão ao mínimo, investir mais na dinamização do sector privado do audiovisual, por forma a que o investimento do Estado e as contribuições (na factura eléctrica) dos ccidadãos seja mais reprodutiva. Isso é bem mais importante e estruturante que uma ilusória privatização.
E, a seguir, com a RTP mais focada na essência do serviço público, deixando de ser concorrente no mercado publicitário, existem novas condições para se desenvolver o mercado, para surgir um novo canal comercial e para ver como tudo isto se articula com o processo da televisão digital terrestre, essa sim uma matéria que merece toda a atenção, para que a decisão e o futuro não fiquem hipotecados no espírito controleirista do Ministro Santos Silva – cuja acção em muito pouco abona para que se encare com tranquilidade o desfecho desse processo, que é o mais importante de todos no contexto das indústrias da comunicação e do entretenimento em Portugal.
(Publicado na edição de Maio da Revista «Atlântico».)
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