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O SEXO E MAIO DE 68

por falcao, em 05.05.08

(Publicado no «Jornal de Negócios» de 2 de Maio)




AGORA - Se pensam que Maio de 68 mudou o mundo, o melhor é olharem para estes últimos anos, desde o 11 de Setembro de 2001: emergência do fanatismo religioso, escalada no preço do petróleo, instabilidade bolsista, o crescimento da China e Índia e os reflexos no resto do planeta, a derrocada do sistema financeiro, o descontrolo no preço dos alimentos: estes dez primeiros anos do último milénio prometem deixar mais marcas que os últimos 32 do milénio passado.


 
ANTES - E, no entanto, 1968 foi um ano marcante: A Primavera de Praga e a chegada de Dubcek ao poder levaram à invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, desencaderam a crise na heterodoxia comunista e significaram o princípio do fim do império soviético.  No mesmo ano, nos Estados Unidos, foram assassinados em atentados Martin Luther King e Robert Kennedy Jr. Para além da França, manifestações diversas, mas significativas, ocorreram na Itália, na Alemanha, no Brasil e no México, quase sempre a partir das universidades – eram jovens nascidos por volta de 1950, frutos dos casamentos do pós guerra e da súbita evolução da sociedade e dos costumes. Em 1967 os hippies, acabados de surgir, tinham lançado ao mundo o slogan « Make Love, Not War».


Nesse tempo, as notícias chegavam mais pela rádio e pela imprensa que pela televisão, e as imagens do que se passavam no mundo vinham nas revistas. O meu Maio de 1968 foi marcado pelas edições especiais do «Paris-Match» e do «L’Express» que cá chegavam, e que mostravam o que de outra maneira não se conseguia ver. 


A ORIGEM  - Maio de 1968 não foi um fenómeno súbito, teve a ver com dois movimentos essenciais que se cruzaram: em primeiro lugar o pacifismo, alimentado nos protestos contra a guerra do Vietname; e, em segundo lugar, a reivindicação de liberdade sexual e a recusa da autoridade.


É curioso recordar como tudo começou, em França, nesse ano de 1968: Paris-Nanterre era uma Universidade periférica, para onde eram arredados os que não haviam conseguido ingressar na Sorbonne ou em outras prestigiadas escolas superiores do centro de Paris. Era o que se podia dizer uma universidade contestatária: tinha-se indignado com a morte de Che Guevara em finais de 67, protestava regularmente contra a guerra do Vietname e devorava com avidez as notícias da Revolução Cultural que Mao Tse Tung dirigia na longínqua e enigmática China.


Mas na realidade o rastilho dos primeiros incidentes da Universidade de Paris-Nanterre (que foi onde tudo se iniciou) foi inflamado pela proibição, em Março de 1968, pelas autoridades académicas, de uma conferência sobre a obra de Wilhelm Reich, um psicanalista de origem austríaca que preconizava que os adolescentes deviam viver livremente a sua sexualidade e, de uma forma geral, defendia a liberdade sexual. A revolta começa contra as autoridades académicas, conservadoras, que não viam nas teorias de Reich nada que merecesse ser discutido numa Universidade. No centro das suas teorias estava o «orgónio», uma forma de energia que derivaria directamente do acto sexual e do prazer nele obtido. Reich morreu, só e desacreditado, em 1957, nos Estados Unidos, mas em meados dos anos 60 as suas principais obras foram reeditadas e ganharam uma súbita segunda vida. Foi, em parte, o mentor involuntário do célebre Verão do Amor, na Califórnia, em 1967. A originalidade e liberdade do  Festival de Monterrey e os slogans «Make Love Not War», chegaram à Europa com uns meses de atraso. Mas chegaram com força. 




A UTOPIA - Foi também esse o tempo suficiente para que em Paris se desse pela obra de Herbert Marcuse, o livro «O Fim da Utopia», publicado em 1967 nos Estados Unidos. Ao contrário de Engels, que defendia que o socialismo avançava a partir do utópico para uma análise científica da sociedade, Marcuse desejava resgatar o valor mobilizador das utopias – o slogan «A Imaginação Ao Poder», que inundou as paredes de Paris nesse Maio, tinha aqui as suas verdadeiras origens. Marcuse, que vivia nos Estados Unidos, estava na vanguarda dos teóricos da nova esquerda, que renegavam o papel do proletariado das sociedades industriais na revolução, acusando-o, com muita justeza, de estar acomodado ao consumismo. Para ele os agentes da transformação social deveriam ser os que estavam fora dos compromissos sociais estabelecidos, os estudantes, as minorias étnicas, os intelectuais que continuavam a ser livre pensadores. Aqui não havia uma ideologia, apenas um protesto, e desses grupos sociais é que, ainda que inconscientemente, partiria a contestação ao sistema capitalista e à ordem autoritária. Para os estudantes e intelectuais franceses isto era música celestial. Estava legitimada teoricamente a acção, coisa que como se sabe é sempre útil em França. Se a proibição da discussão da obra de Wilhelm Reich foi o pretexto, o resto nasceu pura e simplesmente do combate à autoridade e aos valores estabelecidos. E o resto foi uma enorme roda livre, uma explosão de tensões, que provocou forte susto à autoridade, mas que no entanto rapidamente se restabeleceu, como a estrondosa vitória eleitoral do General De Gaulle em finais de Julho, dois meses depois das barricadas, deixou bem claro.


Nesses meses, deu-se o declínio da esquerda tradicional, completamente ultrapassada pelos acontecimentos – o caso havia de lançar socialistas e comunistas franceses numa longa crise. O PSF era já quase inexistente e o Partido Comunista Francês demarcou-se sempre das manifestações estudantis, o que levou Jean Paul Sartre a dizer, com uma ingénua evidência: «Os comunistas temem a revolução ». Uns anos depois, seis para ser mais exacto, o mesmo aconteceu por cá. Uma parte do pós 25 de Abril foi o nosso Maio de 68, com o atraso do costume. E, como em França, no fim, a autoridade foi restabelecida. 
 

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