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CULTURA - Esta semana o tema dos subsídios à actividade cultural irrompeu de forma estridente. O financiamento da Cultura é sempre um problema seja qual fôr o Governo, os candidatos e projectos são sempre em excesso das verbas disponíveis e as coisas pioram quando há arrogância do poder associada a incompetência - que na realidade foi o que aconteceu. Mas esta semana houve uma reveladora frase no meio da polémica quando, depois de chamado a S. Bento, o Secretário de Estado da Cultura confessou ingenuamente que o Primeiro-Ministro António Costa estava a par de tudo o que se tinha feito e aplicado. Acontece que o Primeiro-Ministro, como já aconteceu noutros casos e noutras áreas, cedeu ao sururu de quem protestou e primeiro deu um público puxão de orelhas ao Ministro e Secretário de Estado por terem deixado criar tanto alarido, apareceu ele próprio a resolver a confusão e rematou com um cínico elogio aos ocupantes da Ajuda. Este caso ilustra duas coisas: em primeiro lugar que não existe uma política nem um estratégia para a Cultura - e não é de agora, bem sei; e, em segundo lugar, que António Costa prefere ceder mais uma vez aos protestos do que perceber porque existem e qual o caminho para resolver o problema de fundo - para não ir mais longe actualizar a Lei do Mecenato. Na realidade António Costa replicou aqui o que tem feito em tantos casos - preferiu ceder às reivindicações suportadas pelo Bloco e pelo PCP a ter que arranjar dores de cabeça em futuras votações parlamentares. Desenganem-se os grupos de teatro se acham que o recuo anunciado tem a ver com uma compreensão da situação e a definição de uma nova política. O que se passou foi uma troca: satisfazer aqui os aliados da coligação, para noutros casos lhes pedir a compensação. Foi só isto. Mais à frente se perceberá qual foi a taxa de câmbio utilizada.
SEMANADA - Na PSP há 16 sindicatos, três deles têm mais dirigentes que sócios; a pressão turística no Porto e em Lisboa é superior à que se verifica em Londres ou Barcelona; Portugal importa dez mil toneladas de pão diariamente, em todo o país há apenas 300 guardas-nocturnos; a rede Siresp, que serve de sistema único de comunicação entre as forças e serviços de segurança e emergência falhou durante nove mil horas, em 2017; quase 30% dos estudantes abandonam o ensino superior e mais de metade dos alunos que entram com média de 10 valores não acaba a licenciatura; em 2017 foram registados 22.599 crimes de violência doméstica, 6.303 dos quais no distrito de Lisboa; as ajudas concedidas à Banca entre 2007 e 2017 foram de 23,7 mil milhões de euros, cerca de 12,3% do PIB, o que significa 2302 euros por cada português; as vendas de automóveis nos três primeiros meses do ano aumentaram 4,7% em relação ao mesmo período do ano passado e totalizaram 73 104 viaturas; de acordo com a Marktest, 21.96% do poder de compra está concentrado em 5 concelhos: Lisboa, Porto, Sintra, Vila Nova de Gaia e Cascais ; ainda segundo a Marktest cerca de 3,9 milhões de portugueses com 15 e mais anos ouviram música online em 2017 e este hábito aumentou 91% nos últimos sete anos; o Estado exige a privados contratos a prazo mais curtos que os que utiliza nas suas próprias contratações de pessoal.
ARCO DA VELHA - Na semana passada a RTP2 ficou em 12º lugar das audiências a nível nacional e na região de Lisboa nem aparece entre os 20 canais mais vistos.
FOLHEAR - Se sigo a actualidade e as notícias no digital, prefiro olhar para a reflexão e a descoberta no papel. E é aí que entra a nova geração de revistas que se vai publicando e que mostra as capacidades da imprensa, que estão longe de estar esgotadas. Com criatividade, imaginação editorial e gráfica, arrojo, e alguma capacidade para encontrar nichos de público yêm surgido numerosas novas publicações. A minha mais recente descoberta é a “Mayday”, cujo primeiro número foi publicado no final do ano passado, em Copenhaga, uma cidade que nesta área editorial tem estado muito activa. A revista debruça-se sobre cultura, sociedade, tecnologia e realidades imprevistas, no dizer dos próprios editores. A História é o ponto de união de vários artigos desta edição - seja a narrativa de Don Quixote, sejam as descobertas sobre a evolução da humanidade. Um artigo que me chamou particularmente a atenção chama-se “A Arte É a Lente Que Nos Permite Ver o Mundo”, escrito pela curadora de um dos museus europeus que mais admiro, o Louisiana Museum Of Modern Art, nos arredores de Copenhaga. Mary Laurberg, uma das curadoras do museu, fala sobre quatro artistas escandinavos contemporâneos a partir da frase de Joyce Carol Oates, “a Arte leva-nos a novos lugares”. Termino com um destaque de uma das páginas da “Mayday”: “a colaboração é uma das mais importantes competências do século XXI”. Vista numa folha, retive estas palavras. Talvez num ecrã isso não tivesse acontecido. A “Mayday” está disponível na Under The Cover, Rua Marquês Sá da Bandeira 88.
VER - A iniciativa British Bar, imaginada e desenvolvida por Pedro Cabrita Reis, entrou agora na sua 12ª edição - tem portanto um ano de vida. Ao longo destes 12 meses Cabrita Reis seleccionou e convidou mensalmente três artistas plásticos para criarem ou escolherem obras suas que pudessem ser expostas nas três montras verticais do British Bar, no Cais do Sodré, uma casa que o organizador frequenta há muitos anos e que é um ponto de passagem num local central. É uma forma especial de arte pública, expondo obras num contexto bem diferente do habitual e colocando-as perante públicos diversos daqueles que as estão habituados a ver nas galerias ou museus. Sempre suportada por um folheto bem elaborado com informação sobre os artistas e obras expostas, esta semana foram apresentadas “Private Dancer” de Pedro Calapez, “Fruteira”, de Pedro Valdez Cardoso, e Banco de Estirador B, de Fernanda Fragateiro. São todas elas obras criadas para o local e confrontam quem passa na rua com três perspectivas criativas bem diversas. Outras sugestões: no espaço capela do Centro Cultural de Cascais um ensaio fotográfico de Bruno Saavedra, “Ana”, sobre os últimos cinco dias de vida de uma mulher; na Galeria Módulo, Tito Mouraz mostra a sua visão do interior em “Fluvial”.
OUVIR - Nos dias de hoje as fronteiras entre géneros são cada vez mais ténues e as classificações são por vezes dificeis. Quando músicos de jazz se lançam em música improvisada maioritariamenteb de origem electronica, poderá ser considerada ainda dentro dos terrirórios do jazz contemporâneo? Os britânicos GoGo Penguin estão no centro de uma polémica sobre este assunto desde o seu disco anterior, “Man Made Object”. O novo “A Humdrum Star”, já distribuído em Portugal, vem reacender a discussão. Há aqui elementos de house, mas também de electrónica, de ambiental, de clássica contemporânea. Este “A Humdrum Star” é um passo em frente na transição dos Go Go Penguin para um território electrónico mais explícito e acentuado onde alguma ausência de regras é a matéria prima mais visível para a forma como as nove faixas deste disco se desenvolvem e cruzam, com uma bem vinda libertinagem que tem andado demasiado arredada da música. O que aqui me seduz mais é o cruzamento do piano com teclados electrónicos, a presença da percussão bem cruzada com o baixo, tudo a fluir de forma deliciosamente imprevisível, ao sabor dos acontecimentos e do sentir dos músicos. Há muito que não ouvia um disco tão libertador. CD “A Humdrum Star”, dos GoGo Penguin, edição Blue Note, distribuição Universal Music.
PROVAR - Estamos no fim da época dos ouriços do mar e não há melhor local para descobrir esta iguaria do que a Ericeira, onde, até domingo, decorre o 4º Festival Internacional dos Ouriços do Mar. Em 22 restaurantes da localidade e arredores (nalguns o prazo será alargado) dão-se a provar diversas formas de experimentar esta iguaria a que alguns chamam o caviar da Ericeira. Acontece que a preparação dos Ouriços é trabalhosa, a época do ano em que estão com as saborosas ovas é esta e é muito limitada, os ouriços do mar são raros e a sua apanha é difícil. Mas a Ericeira é o seu bastião em Portugal. As propostas existentes nos diversos restaurantes da terra passam por um risotto de ouriços do mar com camarão grelhado, açorda de ouriços de mar, arroz do mar com ouriços e algas e até caril de ovas de ouriços do mar ou spaghetti com ovas de ouriço. Mas se é neófito nestas lides comece por experientar os ouriços ao natural, uma experiência inesquecível, pela explosão de sabor de mar que proporciona .
DIXIT - Actualmente não há quase nada mais importante do que garantir a existência de um robusto serviço público de informação acessível universalmente aos cidadãos - Emily Bell, ex editora digital do Guardian.
GOSTO - O filme "Terra Franca", a primeira longa-metragem da realizadora Leonor Teles, venceu o "Prix International de la Scam" no festival Cinéma du Réel em Paris.
NÃO GOSTO - Do plágio feito no filme “Peregrinação”, realizado por João Botelho, ao livro “Corsário dos Sete Mares”, de Deana Barroqueiro, utilizado sem autorização nem tão pouco comunicação prévia.
BACK TO BASICS - Os americanos não têm o sentido da privacidade nem sabem o que ela significa, privacidade é coisa que não existe nesse país - George Bernard Shaw.
TALVEZ - Em pouco mais de 48 horas, algures no Atlântico, o mais alto magistrado da nação passou da salvação ao talvez, com passagem clandestina pela casa de partida da negação. Por muitos anos que viva não conseguirei perceber o que se passou - como é que alguém pensou que podia fazer xeque mate ao PS deixando sem imaginar o Rei Soares a esgueirar-se para dentro do tabuleiro. Na política, como no xadrez, é preciso saber as regras do jogo e, mais ainda, antever as jogadas do adversário. Notoriamente o pecado capital de Cavaco Silva foi não prever o que se poderia passar. Tomou os desejos por realidades, fiou-se nas conversas das sereias que o bajulam e negou as evidências. Quando no último round deste combate de boxe entraram os pesos pesados em acção, o peso pluma de Belém ficou sem reacção. meteu os pés pelas mãos e mostrou como os 20 dias que empatou foram dias perdidos - porque regressou exactamente à casa de partida onde estava. Se há coisa que esta crise de 2013 mostra é a necessidade de rever o papel do Presidente da República - este semi-presidencialismo excitado, que fenece ao primeiro obstáculo, é uma atrapalhação para o Parlamento e para o regime. O regime, já o sabemos, não está são e os partidos estão comatosos. No meio deste desvario, o Presidente da República tem sido mais um carrasco que um salvador. E esse é um dos recorrentes problemas a resolver. Adivinha da semana: quem é que gosta de falar do futuro daqui a um ano e vai falhando o futuro próximo, que está ao virar da porta, comprometendo o presente ?
LISBOA - À medida que se aproxima o 29 de Setembro, aceleram as obras. Ruas há muito esburacadas levam um maquilhagem de asfalto. A Rua do Ouro, que parecia um concurso de lombas e declives, está a levar um “facelift”. Costa desempenha o papel daqueles cirurgiões estéticos que não resolvem o problema, mas conseguem iludir as aparências. O que anda a fazer em Lisboa - da beira rio, ao centro da cidade, é uma espécie de botox alcatroado. Só lhe falta fazer rotundas - mas em compensação fez ciclovias que permanecem desertas na maior parte do dia. Pelo caminho que as coisas levam, António Costa será um voto perdido para os que ne acreditam - vai conseguir maneira de deixar Lisboa entregue ao soldado desconhecido enquanto ele vai pelear pelo Governo - A Lisboa de Costa, a vida política de Costa, é isto: ilusão, make up e propaganda. O pior é quando se anda na Avenida da Liberdade...
SEMANADA - Sinal do regime: o BPN continua bem presente na vida política nacional e no poder; na imprensa, entre 2004 e 2011 desapareceram 782 publicações regulares; a dívida portuguesa é, na zona euro, a que mais sobe desde 2010 - 42 milhões de euros por dia ao ritmo actual; Vitor Gaspar dimitiu-se a 1 de Julho; a crise abriu-se a 2 de Julho com a demissão de Paulo Portas; a nova orgânica proposta para o Governo, já após negociações da coligação, foi comunicada dia 5 por Passos Coelho a Cavaco; depois o Presidente da República fez um intervalo para parto de uma ideia e, finalmente, a remodelação só foi concretizada a 23, o mesmo dia em que António José Seguro completou 2 anos à frente do PS - imagino que a remodelação tenha sido uma prenda segura depois da ruptura das negociações de “salvação nacional”; indiferente às redundantes reorganizaç\oes e discussões sobre serviço público, a televisão está a mudar - meia centena de candidatos às autárquicas já criaram canais de televisão próprios no Meo Kanal, algo impensável há quatro anos; nos últimos cinco anos foram investidos seis mil milhões de euros em projectos agrícolas; o negócio da agricultura biológica vale 20 milhões de euros por ano; as exportações de frutas, legumes e flores triplicaram na última década; dos 75 mil candidatos a professores, só 1344 foram colocados; dos 40 mil professores contratados apenas três conseguiram entrar nos quadros de uma escola pública; a greve de guardas prisionais teve forte adesão na cadeia dos VIP - qualquer dia há um reality show por detrás das grades.
ARCO DA VELHA - Suspeitas de fraudes no Serviço Nacional de Saúde já levaram à detenção de 35 pessoas, à constituição de 250 arguidos e à detenção de irregularidades superiores a 135 milhões de euros.
VER - Pode um curador deixar uma marca? Eu digo que sim, e há duas exposições em Lisboa que abonam esta tese, ambas com curadoria de Luis Serpa. No BESart, no Marquês do Pombal, está 'Territórios de Transição #11 - A Experiência do Silêncio', que reúne um conjunto de obras de fotografia da coleção BESart e d'O Museu Temporário, até 19 de setembro. É uma exposição que mostra a importância do ritmo com que o visitante vê, quando se faz uma montagem de uma sucessão de obras, na essência muito diferentes, mas que acabam por confluir graças ao trabalho do curador. Mas é em “Aparências Privadas”, uma mostra de auto-retratos de artistas contemporâneos, da colecção Safira& Luis Serpa e da Colecção Arpad Szenes-Vieira da Silva que melhor se compreende a importância do curador e, muito, do pormenor da escolha, da montagem. A exposição estará patente até 10 de Novembro na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, no Jardim das Amoreiras,e é um dos pontos imperdíveis do roteiro estival em Lisboa.
OUVIR- Se tiverem um descapotável a audição deste disco fica facilitada: é pô-lo a tocar e senir os quilómetros a passar, com a brisa a ajudar. Se não for o caso, como acontece à maioria doa mortais, o disco serve para imaginar como podia ser agradável ouvi-lo nas circunstâncias atrás descritas. Seja como fôr este disco de que falo substitui um DJ - porque é feito por DJ’s, que fizeram as suas malfeitorias habituais em cima de temas clássicos do jazz vocal. “Verve Remixed - The First Ladies”, agarra em temas históricos do catálogo da Verve, de nomes como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nina Simone, Dinah Washington ou Astrud Gilberto e dá-lhes um tratamento remix por cima. Os puristas não vão gostar, o tratamento é mais radical que em anteriores remixes do catálogo Verve. Aqui há pouca ligação com o passado e, mais, um exercício do prazer imediato. Sinal dos tempos que correm. (Verve Remixed, the First Ladies, CD Universal, FNAC)
FOLHEAR - A “Wired” britânica de Agosto dá a capa ao tema “Como ser criativo nos negócios: 13 lições para pensar mais ráºido e melhor”. Atendendo à conjuntura nacional eu acho que uma boa atitude de serviço público era distribuir exemplares desta edição por vários ministérios. Começava em S. Bento, onde a criatividade se revela cada vez mais necessária, e depois fazia um périplo pelas Finanças, a Economia e a Educação. Já nem faslo nos novos Negócios Estrangeiros, porque o bafio é medonho. A ver vamos como tudo se desembrulha. A “Wired” britânica continua provocatória como se deseja, “mainstream” para ser viável e útil para ser atraente. Em resumo - três pilares de serviço público - se a RTP fosse provocatória, mainstream e útil, em simultâneo, não haveria tanta conversa à volta do assunto. A coisa resolvia-se por si. A vantagem do comando de televisão é que assim toda a gente pode mudar de canal. E, eventualmente, ouvir ou ler em vez de ver. A experiência não é pior.
PROVAR - Sento-me com amigos à volta de um queijo, umas lascas de presunto também. Combinamos petiscar. Abre-se uma garrafa de “Aurius”, o tinto de touriga nacional, syrah e petit verdot feito por José Bento dos Santos na sua Quinta do Monte D’Oiro, em Alenquer. O ano da colheita é 2009, mas chegou agora ao mercado. Tem 14º e o seu aroma quente vai bem com os petiscos que debicamos. Beberricamo-lo devagar, a apreciar os sabores das castas que o compõem. Perdemo-nos nos abores e na conversa. Foi uma noite magnífica.
GOSTO - Da nova composição do Governo
NÃO GOSTO - Do tempo que se perdeu a fazer a remodelação
O papel do Serviço Público de televisão tem que ser visto hoje em dia no contexto da dinamização do tecido industrial audiovisual português e da divulgação da língua e cultura portuguesa no espaço digital. Por outro lado a rápida evolução tecnológica exige que verdades passadas sejam reanalisadas periodicamente e que os períodos de atribuição dos contratos de concessão do serviço público, e respectivo conteúdo, sejam aferidos, avaliados e eventualmente modificados com maior frequência do que até aqui tem sucedido.
Há alguns anos que me interesso pelo tema: em 2002 integrei uma Comissão criada pelo Ministro Morais Sarmento, que elaborou um Relatório sobre o Serviço Público de Televisão, cujos princípios gerais continuam justos. Algum tempo depois fui convidado para pôr de pé o projecto de um canal aberto à Sociedade Civil, que ficou conhecido como a 2:, que dirigi durante quase três anos. Antes, quando trabalhei na produção independente, nomeadamente na área dos documentários, na Valentim de Carvalho Televisão, testemunhei que era mais fácil vender documentários sobre a história contemporânea portuguesa à SIC, como aconteceu, do que à RTP. De há cerca de três anos a esta parte a estação pública tem perdido progressivamente relevância e, nos tempos mais recentes, as mudanças de tecnologia, de distribuição e de hábitos de consumo de programas foram enormes, afectaram-na de forma sensível, e é absolutamente indispensável que as definições gerais de serviço público audiovisual sejam adaptadas à realidade da introdução da Televisão Digital Terrestre, que é utilizada como meio único de recepção por apenas cerca de um quarto dos lares portugueses, e que o papel da RTP seja repensado no novo universo tecnológico, nomeadamente enquanto motor de inovação e não enquanto bastião da tradição.
Costumo dizer que Gutenberg chegou à televisão com a entrada no mercado de câmaras digitais de alta definição de preço acessível e com sistemas de edição baseados em computadores que qualquer um de nós pode ter em casa. Mas a realidade é que este Gutenberg audiovisual ainda é pouco aproveitado pelo serviço público e que a RTP, para utilizar uma analogia com a imprensa, ainda trabalha com composição a chumbo numa época em que o offset já tem várias gerações e em que, por exemplo no MEO, é possível a cada um de nós criar um canal – bem sei que não é bem disso que estamos a falar, mas este exemplo serve para mostrar como a televisão deixou de ser uma tecnologia inacessível e isso tem inevitavelmente consequências no comportamento de todo o sistema.
A ALTERAÇÃO DO CONSUMO E A REESTRUTURAÇÃO DA RTP
Hoje em dia cerca de 77% dos lares portugueses consomem televisão que lhes chega por um dos sistemas de distribuição de cabo ou satélite. Quer isto dizer que estes lares têm uma oferta de pelo menos meia centena de canais, em vez dos quatro tradicionais (RTP 1 e 2, SIC e TVI) e do Canal Parlamento, que também está, vá-se lá perceber porquê, na Televisão Digital Terrestre.
Portanto, sem desprezo pelos 23% de lares restantes, a oferta e os hábitos de consumo de televisão em Portugal mudaram de forma substancial nos últimos cinco anos. Basta dizer que desde há mais de um ano o conjunto dos canais de cabo ultrapassa em share médio de audiência qualquer um dos canais de sinal aberto.
Ora estas alterações significativas na distribuição e no consumo dos canais de televisão tem inevitavelmente consequências no serviço público – sobretudo no que deve ser a sua definição hoje em dia. A questão do acesso universal e gratuito por exemplo, já não é a pedra de toque da definição. Por outro lado, os canais generalistas e comerciais privados fornecem informação pelo menos tão pluralista como a da RTP, entretenimento e produção nacional em maior quantidade que a RTP, e qualquer pessoa – com cabo ou sem cabo - pode aceder a eles em qualquer ponto do território para ver futebol ou transmissões diretas de acontecimentos importantes – já que todos o fazem.
Fruto de um posicionamento concorrencial face aos privados, a RTP é ainda hoje uma entidade despesista, com uma estrutura sobredimensionada e custos desproporcionados. Num modelo ideal a RTP devia possuir apenas os meios necessários à informação e à emissão e tornar-se, usando a terminologia anglo-saxónica, num “broadcaster” e não numa empresa de produção, que é hoje em dia.
Ou seja, toda a área de conteúdos não informativos devia ser descontinuada e o investimento em programas de documentário, ficção, infantis e entretenimento devia ser aplicado na produção externa e na aquisição de programas - o que quer dizer ter uma ideia do que se quer encomendar, do que se deve aceitar, do quye se deve exigir aos produtores externos: ou seja não ter um papel passivo na recepção da encomenda, mas um papel activo de discussão de conteúdos e de resultado final, em função dos objectivos da estação. Ao contrário do que muitos pensam a BBC não produz internam,ente as belas séries e os belos documentários que conhecemos: contrata produtores externos para a sua concretização mas tem uma equipa de produtores executivos que define, acompanha, controla e decide se o produto final está de acordo com a encomenda e com as guidelines da estação.
Este canalizar para a aquisição de conteúdos de parte importante das verbas actualmente gastas em funcionamento permitiria dinamizar a produção independente, desenvolvendo e consolidando uma industria audiovisual, necessária à manutenção do português enquanto língua viva. Recordo que a RTP é a empresa que menos tempo de emissão consagra à produção nacional não informativa, nomeadamente na ficção.
No meu entender existe um papel importante a desempenhar pelo serviço público e que tem a ver com uma carteira de encomendas continuada, junto à produção independente, nas áreas menos apetecidas pelos operadores privados, como os documentários, o registo de espectáculos na área do entretenimento ou uma programação infantil acessível, cuidada e baseada no português falado e não em legendagens. Estas áreas são fulcrais para o desenvolvimento e para a nossa sobrevivência no universo dos conteúdos audiovisuais. Actualmente, nem 10% do investimento em grelha chega à produção independente.
De uma forma mais concreta, faria sentido que o serviço público de televisão investisse a maior fatia do seu orçamento de produção na encomenda e aquisição de programação de stock – aquela que se pode repetir ao longo do tempo e que não se esgota na primeira emissão, e a que se chama de fluxo. Para dar um exemplo uma série de ficção é stock e um concurso como o “Preço Certo” é fluxo. Faz mais sentido investir no que perdura do que naquilo que se evapora, certo? Já nem vou dizer que o aproveitamento da produção de stock nas emissões internacionais, em intercâmbios com outras televisões ou até na venda de direitos é uma realidade e que o fluxo é inaproveitável em tudo isto. A este propósito não deixa de ser interessante que a BBC tenha escolhido a sua área emporesarial que se dedica à comercialização dos conteúdos próprios (produzidos externamente), para servir de garantia e alavanca a uma operação de financiamento.
CRIATIVIDADE OU BOÇALIDADE?
Analisemos o tema de outra perspectiva, mesmo correndo o risco de alguma repetição: nos dias de hoje, num país com a dimensāo de Portugal, qual o sentido de existir um serviço público de televisāo, suportado pelos cidadāos, neste caso por uma taxa obrigatoriamente paga por todos os consumidores de electricidade? Numa sociedade onde felizmente existem vários operadores privados de televisāo e de rádio, e numa época em que o digital veio proporcionar novas formas de emissāo, difusāo e recepçāo - para nāo falar já profunda alteraçāo dos hábitos e formas de consumo de televisāo, sobretudo entre os mais novos - para que serve um serviço público?
Correndo mais uma vez o risco de me repetir, insisto em algumas perguntas: o serviço público deve fazer concorrência aos privados, ou deve proporcionar programaçāo alternativa e formativa? O serviço público deve ser comprador concorrencial de direitos de exibiçâo de futebol, um conteúdo comercial especialmente apetecível, contribuindo para inflacionar o seu preço? Ou deve privilegiar o fomento da produçāo de ficção e dos documentários sobre a realidade portuguesa? Deve fomentar a criatividade ou a boçalidade? Deve fazer programaçāo infantil em português, que possa ser difundida noutros países lusófonos, ou deve gastar recursos a fazer formatos internacionais de concursos e de entretenimento? Deve privilegiar a co-produção com outros países do universo cultural lusófono, ou adquirir séries que já passam nos canais de cabo emitidos em Portugal?
Bem sei que um canal que se focasse na nossa cultura e na nossa história, que fizesse uma informação de referência, abdicando da espectacularidade do sensacionalismo e da chicana política, teria menos audiência e menor influência na luta partidária. Mas, ao nível a que já caíram as audiências da RTP, a diferença não seria grande e até poderiam surgir surpresas.
A este propósito, as recentes decisões da RTP, de suspender a produção de documentários por produtores independentes é muito preocupante: penso que esta devia ser uma área prioritária de recursos financeiros das grelhas e não uma área descartável. No fundo, a RTP quer investir em fluxo ou em stock? É esta a questão que deve ser clara em decisões futuras sobre as obrigações do serviço público.
Finalmente penso que uma área onde se devem aproveitar as disponibilidades técnicas e humanas da RTP - e que deve fazer parte da sua missão - é a informação regional e até mesmo local. O seu serviço informativo deveria ser orientado para a proximidade com os seus públicos e não apenas de índole nacional, repetindo os canais concorrentes. Da mesma forma faria sentido desenvolver as boas capacidades existentes de reportagem, a partir dos meios disponíveis na Direcção de Informação - alguns desses espaços já existentes são aliás exemplo de boas audiências conquistadas pelo canal.
Mais vale um serviço público sério, rigoroso e dinamizador do tecido industrial audiovisual que um serviço incaracterístico, concorrencial com os privados e que tenha por missão disputar audiências. Um serviço público pensado sobre uma matriz cultural na acepção mais ampla da palavra, seria uma alternativa verdadeira, teria um carácter complementar, e um papel maior e mais importante a longo prazo na defesa da presença da nossa língua no mundo. Um serviço público assim, que dinamizasse a indústria audiovisual, que apostasse na produção externa, seria um investimento com retorno em vez de um problema a fundo perdido - como a RTP tem maioritariamente sido nos últimos 20 anos.
OLHAR PARA O FUTURO E TOMAR DECISÕES
Um país que não tiver produção audiovisual de referência, que não apostar em conteúdos duradouros, não terá existência futura no mundo digital, o seu idioma não existirá para geração futuras, não terá presença nem influência internacional. Infelizmente a estratégia é esta, a da dissolução da nossa presença no mundo contemporâneo - bem diferente de outros países com idiomas menos falados, como a Noruega, a Finlândia ou a Islândia, onde no entanto se pensa numa estratégia nacional de conteúdos - que tem sabido cativar audiências onde menos se espera.
Para terminar e para esclarecer as coisas, sou da opinião de que deve existir serviço público, tendencialmente com um único canal nacional de sinal aberto, com um forte enfoque em noticiário nacional, regional e internacional, de acesso livre e universal em todo o território português, por difusão hertziana. Este canal, na minha opinião, não deve ter publicidade nem patrocínios comerciais e deve privilegiar a informação, o pluralismo, o debate, a programação infantil de qualidade, a produção de documentários de diversa índole e a produção de ficção nacional nas tipologias não concorrenciais com os canais privados. Pode e deve ter um tratamento adequado do entretenimento, modalidades de desporto incluídas – sobretudo não pode ser um canal maçador, sorumbático e cinzento.
Gostaria de aprofundar a questão da publicidade. Actualmente a RTP pode ter até seis minutos por hora de inserções publicitárias, e os privados podem ir até aos 12. Nesta altura do ano de 2013, o investimento publicitário nos canais de sinal aberto (RTP1, SIC e TVI) está a cair cerca de 20%, por cima das quedas verificadas nos últimos anos. O desconto médio em relação aos valores de tabela tem vindo a aumentar. A oferta de espaço publicitário nas televisões de sinal aberto encontra a concorrência cada vez maior dos dos canais de cabo. Na realidade a oferta de espaço publicitário em televisão de sinal aberto excede largamente a procura e, salvo raras ocasiões, nem os seis minutos hora são ocupados. O resultado é uma acentuada quebra de valor do espaço publicitário em televisão, o que tem efeitos nefastos noutros media, sobretudo a imprensa - já que o preço em televisão baixou a valores que se tornam, na prática, muito concorrenciais. Também aqui, na minha opinião, se devia repensar o tema, caminhando para uma progressiva diminuição da publicidade na RTP até à sua anulação - este é o papel regulador que, creio, o Estado pode e deve ter para procurar assegurar uma diversidade de formas de comunicação e não a sua redução.
Existem pelo mundo diversos canais públicos com estas boas características, que inclusivamente exportam formatos. Esse canal deve ter o mínimo de meios necessários e basear a sua produção nos produtores independentes, seguindo as recomendações internacionais sobre esta matéria. A presença do operador de serviço público no cabo deve ser repensada à mesma luz da não concorrência aos privados e protegendo a necessidade de maior participação das diversas regiões do país, aproveitando os recursos técnicos existentes para a informação. E, finalmente, a nível internacional, o operador de serviço público deve acabar com o RTP África – compreendendo aliás que nos países lusófonos já existem operadores locais de televisão com os quais interessa mais fazer cooperação do que concorrência - e manter apenas um canal que seja a imagem internacional do país – um embaixador audiovisual de Portugal.
Isto é o que me interessa – ou seja, os conteúdos de um serviço público de televisão e as suas obrigações é que o tornam, ou não, útil e necessário. O resto é uma questão de distribuição e de organização. Mas o primeiro passo é decidir o que deve ou não ser assegurado, da forma mais concreta que fôr possível.
(Este texto é uma versão actualizada do que foi publicado na revista Notícias TV de 5 de Julho)
(Texto de opinião escrito a pedido da Notícias TV numa série de artigos sobre "A RTP e o Futuro")
Depois dos acontecimentos desta semana, fica novamente em aberto o que vai acontecer à RTP – a mudança de Governo e de ciclo político trará provavelmente alterações aos planos traçados. Há alguns anos que me interesso pelo tema: em 2002 integrei uma Comissão criada pelo Ministro Morais Sarmento, que elaborou um Relatório sobre o Serviço Público de Televisão, cujos princípios gerais continuam justos. Algum tempo depois fui convidado para pôr de pé o projecto de um canal aberto à Sociedade Civil, que ficou conhecido como a 2:, que dirigi durante quase três anos. Antes, quando trabalhei na produção independente, nomeadamente na área dos documentários, na Valentim de Carvalho Televisão, testemunhei que era mais fácil vender documentários sobre a história contemporânea portuguesa à SIC, como aconteceu, do que à RTP. De há cerca de três anos a esta parte a estação pública tem perdido progressivamente relevância e, nos tempos mais recentes, as mudanças de tecnologia, de distribuição e de hábitos de consumo de programas foram enormes, afectaram-na de forma sensível, e é absolutamente indispensável que as definições gerais de serviço público audiovisual sejam adaptadas à realidade da introdução da Televisão Digital Terrestre e que o papel da RTP seja repensado no novo universo tecnológico, nomeadamente enquanto motor de inovação e não enquanto bastião da tradição.
Costumo dizer que Gutenberg chegou à televisão com a entrada no mercado de câmaras digitais de alta definição de preço acessível e com sistemas de edição baseados em computadores que qualquer um de nós pode ter em casa. Mas a realidade é que este Gutenberg audiovisual ainda é pouco aproveitado pelo serviço público e que a RTP, para utilizar uma analogia com a imprensa, ainda trabalha com composição a chumbo numa época em que o offset já tem várias gerações e em que, por exemplo no MEO, é possível a cada um de nós criar um canal – bem sei que não é bem disso que estamos a falar, mas este exemplo serve para mostrar como a televisão deixou de ser uma tecnologia inacessível e isso tem inevitavelmente consequências no comportamento de todo o sistema.
A ALTERAÇÃO DO CONSUMO E A REESTRUTURAÇÃO DA RTP
Hoje em dia cerca de 77% dos lares portugueses consomem televisão que lhes chega por um dos sistemas de distribuição de cabo ou satélite. Quer isto dizer que estes lares têm uma oferta de pelo menos meia centena de canais, em vez dos quatro tradicionais (RTP 1 e 2, SIC e TVI) e do Canal Parlamento, que também está, vá-se lá perceber porquê, na Televisão Digital Terrestre.
Portanto, sem desprezo pelos 23% de lares restantes, a oferta e os hábitos de consumo de televisão em Portugal mudaram de forma substancial nos últimos cinco anos. Basta dizer que desde há mais de um ano o conjunto dos canais de cabo ultrapassa em share médio de audiência qualquer um dos canais de sinal aberto.
Ora estas alterações significativas na distribuição e no consumo dos canais de televisão tem inevitavelmente consequências no serviço público – sobretudo no que deve ser a sua definição hoje em dia. A questão do acesso universal e gratuito por exemplo, já não é a pedra de toque da definição. Por outro lado, os canais generalistas e comerciais privados fornecem informação pelo menos tão pluralista como a da RTP, entretenimento e produção nacional em maior quantidade que a RTP, e qualquer pessoa – com cabo ou sem cabo - pode aceder a eles em qualquer ponto do território para ver futebol ou transmissões diretas de acontecimentos importantes – já que todos o fazem.
Fruto de um posicionamento concorrencial face aos privados, a RTP é ainda hoje uma entidade despesista, com uma estrutura sobredimensionada e custos desproporcionados. Num modelo ideal a RTP devia possuir apenas os meios necessários à informação e à emissão e tornar-se, usando a terminologia anglo-saxónica, num “broadcaster” e não numa empresa de produção, que é hoje em dia. Ou seja, toda a área de conteúdos não informativos devia ser descontinuada e o investimento em programas de documentário, ficção, infantis e entretenimento devia ser aplicado na produção externa e na aquisição de programas. Este canalizar para a aquisição de conteúdos de parte importante das verbas actualmente gastas em funcionamento permitiria dinamizar a produção independente, desenvolvendo e consolidando uma industria audiovisual, necessária à manutenção do português enquanto língua viva. Recordo que a RTP é a empresa que menos tempo de emissão consagra à produção nacional não informativa, nomeadamente na ficção. No meu entender existe um papel importante a desempenhar pelo serviço público e que tem a ver com uma carteira de encomendas continuada, junto à produção independente, nas áreas menos apetecidas pelos operadores privados, como os documentários, o registo de espectáculos na área do entretenimento ou uma programação infantil acessível, cuidada e baseada no português falado e não em legendagens. Estas áreas são fulcrais para o desenvolvimento e para a nossa sobrevivência no universo dos conteúdos audiovisuais.
De uma forma mais concreta, faria sentido que o serviço público de televisão investisse a maior fatia do seu orçamento de produção na encomenda e aquisição de programação de stock – aquela que se pode repetir ao longo do tempo e que não se esgota na primeira emissão, e a que se chama de fluxo. Para dar um exemplo uma série de ficção é stock e um concurso como o “Preço Certo” é fluxo. Faz mais sentido investir no que perdura do que naquilo que se evapora, certo? Já nem vou dizer que o aproveitamento da produção de stock nas emissões internacionais, em intercâmbios com outras televisões ou até na venda de direitos é uma realidade e que o fluxo é inaproveitável em tudo isto.
CRIATIVIDADE OU BOÇALIDADE?
Analisemos o tema de outra perspectiva, mesmo correndo o risco de alguma repetição: nos dias de hoje, num país com a dimensāo de Portugal, qual o sentido de existir um serviço público de televisāo, suportado pelos cidadāos, neste caso por uma taxa obrigatoriamente paga por todos os consumidores de electricidade? Numa sociedade onde felizmente existem vários operadores privados de televisāo e de rádio, e numa época em que o digital veio proporcionar novas formas de emissāo, difusāo e recepçāo - para nāo falar já profunda alteraçāo dos hábitos e formas de consumo de televisāo, sobretudo entre os mais novos - para que serve um serviço público?
Correndo mais uma vez o risco de me repetir, insisto em algumas perguntas: o serviço público deve fazer concorrência aos privados, ou deve proporcionar programaçāo alternativa e formativa? O serviço público deve ser comprador concorrencial de direitos de exibiçâo de futebol, um conteúdo comercial especialmente apetecível, contribuindo para inflacionar o seu preço? Ou deve privilegiar o fomento da produçāo de ficção e dos documentários sobre a realidade portuguesa? Deve fomentar a criatividade ou a boçalidade? Deve fazer programaçāo infantil em português, que possa ser difundida noutros países lusófonos, ou deve gastar recursos a fazer formatos internacionais de concursos e de entretenimento? Deve privilegiar a co-produção com outros países do universo cultural lusófono, ou adquirir séries que já passam nos canais de cabo emitidos em Portugal?
Bem sei que um canal que se focasse na nossa cultura e na nossa história, que fizesse uma informação de referência, abdicando da espectacularidade do sensacionalismo e da chicana política, teria menos audiência e menor influência na luta partidária. Mas, ao nível a que já caíram as audiências da RTP, a diferença não seria grande e até poderiam surgir surpresas.
Mais vale um serviço público sério, rigoroso e dinamizador do tecido industrial audiovisual que um serviço incaracterístico, concorrencial com os privados e que tenha por missão disputar audiências. Um serviço público pensado sobre uma matriz cultural na acepção mais ampla da palavra, seria uma alternativa verdadeira, teria um carácter complementar, e um papel maior e mais importante a longo prazo na defesa da presença da nossa língua no mundo. Um serviço público assim, que dinamizasse a indústria audiovisual, que apostasse na produção externa, seria um investimento com retorno em vez de um problema a fundo perdido - como a RTP tem maioritariamente sido nos últimos 20 anos.
OLHAR PARA O FUTURO E TOMAR DECISÕES
Um país que não tiver produção audiovisual de referência, que não apostar em conteúdos duradouros, não terá existência futura no mundo digital, o seu idioma não existirá para geração futuras, não terá presença nem influência internacional. Infelizmente a estratégia é esta, a da dissolução da nossa presença no mundo contemporâneo - bem diferente de outros países com idiomas menos falados, como a Noruega, a Finlândia ou a Islândia, onde no entanto se pensa numa estratégia nacional de conteúdos - que tem sabido cativar audiências onde menos se espera.
Para terminar e para esclarecer as coisas, sou da opinião de que deve existir serviço público, com um único canal nacional, com um forte enfoque em noticiário nacional, regional e internacional, de acesso livre e universal em todo o território português, por difusão hertziana. Este canal único nacional, na minha opinião, não deve ter publicidade nem patrocínios comerciais e deve privilegiar a informação, o pluralismo, o debate, a programação infantil de qualidade, a produção de documentários de diversa índole e a produção de ficção nacional nas tipologias não concorrenciais com os canais privados. Pode e deve ter um tratamento adequado do entretenimento, modalidades de desporto incluídas – sobretudo não pode ser um canal maçador, sorumbático e cinzento. Existem pelo mundo diversos canais públicos com estas boas características, que inclusivamente exportam formatos. Esse canal deve ter o mínimo de meios necessários e basear a sua produção nos produtores independentes, seguindo as recomendações internacionais sobre esta matéria. A presença do operador de serviço público no cabo deve ser repensada à mesma luz da não concorrência aos privados e protegendo a necessidade de maior participação das diversas regiões do país, aproveitando os recursos técnicos existentes para a informação. E, finalmente, a nível internacional, o operador de serviço público deve acabar com o RTP África – compreendendo aliás que nos países lusófonos já existem operadores locais de televisão com os quais interessa mais fazer cooperação do que concorrência - e manter apenas um canal que seja a imagem internacional do país – um embaixador audiovisual de Portugal.
Isto é o que me interessa – ou seja, os conteúdos de um serviço público de televisão e as suas obrigações é que o tornam, ou não, útil e necessário. O resto é uma questão de distribuição e de organização. Mas o primeiro passo é decidir o que deve ou não ser assegurado, da forma mais concreta que fôr possível.
Manuel Falcão
(Publicado no Meia Hora de 17 de Março)
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